Uma leitura da vida, em “A vida como ela é”
Uma escrita do cotidiano, do que há de inusitado na trivialidade da vida. Esse o traço que percorre as linhas de “A vida como ela é”, conjunto de contos de Nelson Rodrigues, publicados durante dez anos, entre 1951 e 1961, no jornal Última Hora, de Samuel Wainer. A vida trivial que sedimenta o dia-a-dia de famílias tradicionais do Rio de Janeiro dos anos cinqüenta, quando se respiravam os primeiros ares da modernidade industrial no Brasil. Repartições públicas, escritórios, Maracanã e futebol, a vida da mulher em casa ou no trabalho, filhos e filhas, genros e sogras, apartamentos, paixão, ciúme e traição formam o cenário por onde transita o homem mergulhado nos jogos de interesse, querendo participar do mundo burguês, das suas ofertas, uma vida vertiginosa, afetada pelos preconceitos, pela moral e pela ética, pelos compromissos assumidos ao desempenhar o papel social. O mundo das representações, e a falha, fratura ou brecha por onde vaza o inusitado da vida, o elemento desestruturador.
O tema do adultério é o foco dos contos escritos em linguagem popular, quase anedótica, característica do estilo do autor, com certeza desenvolvido nas redações dos periódicos, circunstanciado na vivência dos fatos corriqueiros das páginas policiais (não é por acaso que estas histórias eram publicadas junto à seção de crimes). Estamos, neste sentido, distantes de uma experiência estética da linguagem, no que diz respeito à pesquisa e experimentação de novos recursos estilísticos ou narrativos, comuns à escrita da prosa da modernidade e que se observa em escritores como Guimarães Rosa ou Clarice Lispector, por exemplo. Entretanto, não há como negar que o aproveitamento dos recursos da redação jornalística ganha em Nelson Rodrigues um status que o eleva ao patamar da literatura, da grande literatura moderna brasileira. Além disso, a adoção da forma de narrativa tradicional estabelece um vínculo com a realidade, dialogando com o estilo realista de um Machado de Assis, em sua aguda leitura psicológica das personagens que vivem a trama armada com preciosismo inconfundível. Narrador onisciente, análise arguta, economia da linguagem; sobre este tecido narrativo, mais precisamente em suas dobras, é que Nelson Rodrigues arma a sua objetiva para flagrar manifestações que se encontram na maior parte do tempo escondidas, esperando o momento para que venham à tona e eclodam. O adultério, como tema explorado em quase todas as histórias de “A vida como ela é” aparece como uma das ações que promovem a passagem dessas manifestações. O adultério, marca mórbida de personagens ditas “normais”, uma abertura psicológica levando à tragédia cotidiana, ao mergulho intenso na loucura. A loucura, resto, o que ficou após a eclosão, liberação das forças da natureza rejeitadas à sombra.
Sobre os temas do adultério, da paixão, do amor e da loucura, já tão bem explorados em nossa literatura, cabe dizer que em Nelson ganham, em nosso entendimento, os contornos não de um desvio na conduta moral do homem, visão muito cara à tradição realista-naturalista da literatura brasileira, mas como exploração de um traço pertinente da alma, algo comum, do qual ninguém está isento. Ambiente ofuscado pela consciência, pela “verdade”, perigoso ao ser tocado, pois são trágicas as suas conseqüências, quase sempre conduzindo à aniquilação.
O ato que produz a fratura na vida, tornando-a, ao final das contas, notícia, ou seja, matéria “normal”, podendo figurar nas páginas de um noticiário qualquer. A vida como matéria, vida como ela é, sem mistérios, sem transcendência. A vida e a tragédia, comuns, como elas são, entrelaçadas, duas faces do mesmo rosto, duas expressões da mesma vida, demonstrando ser o trágico uma das forças que movimentam a existência humana e a conduzem a seu um inevitável destino. O trágico, o “dizer sim à vida, até mesmo em seus problemas mais estranhos e mais duros, a vontade de vida, alegrando-se no sacrifício de seus tipos mais superiores à sua própria inauxerabilidade (...)”[1].
Retornando à característica dos textos de “A vida como ela é”, percebem-se neles a força, o fôlego e um enorme poder de síntese, cheio de sugestões poderosas, diálogos cortantes e ligeiros. Caricaturados estão o amigo canalha, a sogra, a vizinha, a mulher feia, o marido honesto, a mulher sem pecado (título inclusive da primeira peça de Nelson Rodrigues), a mulher da vida. Paixão e morte atreladas à força do trivial, movimentando as relações humanas mediadas pelos interesses e pelo desejo. Dinheiro, automóveis, apartamentos, casas onde residem o pai e suas filhas casadas, tias solteironas, cunhados tarados, jovens dissimuladas em tenra idade são o palco onde a vida é encenada sempre em sua “normalidade”, até que surge uma fratura, que dimensiona o real para o quase irreal da realidade.
Dizemos quase, porque o que se observa é, de fato, a corrente da vida, que não rejeita a tragédia como engrenagem de transformação das aparências, como uma das ações da própria natureza, ou melhor, como integrante da natureza, ou alma, humana.
A via de abertura da fenda por onde vaza a força da vida, em “A vida como ela é”, o adultério, é apresentada sob diversas formas, mas sempre como uma experiência desorganizadora da realidade, desconfiguradora do mundo das aparências, que conduz à aniquilação da moldura do homem, moldura (aparência) que oculta a sua morbidez e obsessão e que, de forma trágica, torna-se patente em nova moldura, em nova aparência.
A tragédia torna-se assim uma necessidade para que se manifeste aquilo que na aparência está na sombra, escondido, velado, recalcado ou reprimido. A perplexidade, o espanto, tudo que soa como dissonância, desvão, desvio. Nunca uma falha moral, nunca uma ausência de caráter, mas um traço pertinente do homem que o leva ao encontro de sua natureza, uma natureza que não desdenha a catástrofe, o desmoronamento, a destruição.
Assim percebemos as personagens de “A vida como ela é”, homens que vivem a vida no que ela tem de comum, de forma tão intensa que, em dado instante, como ação da própria vida, um acontecimento libera uma força que vaza. Ao vazar, “nada fica de pé”, qualquer discurso que tenha se construído como verdade, alicerçado na moral e na ética, se apresenta somente como falácia, como uma regulação que tenta assegurar a sobrevivência no mundo, mas que não resiste ao oculto liberado. De forma devastadora, são reveladas as facetas, que sempre estiveram presentes enquanto sombra, vivas, ainda que sob a forma de silêncio, na trivialidade, esperando a força do inusitado para emergirem. Desta imersão, a manifestação da natureza humana em sua forma integral. E mais que pura manifestação,a integração do homem com a natureza, no que esta tem movimento e transfiguração constante. Ou seja, vida, simplesmente. Uma vida afirmada, acatada em suas forças em contradição, em suas diferenças, não como forma de forças polarizadas, mas como unidade.
Tal vida é transfigurada na arte:
A arte e nada mais que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, a grande estimulante da vida.
A arte como única força superior, contraposta a toda vontade de negação da vida, como o anticristão, o antibudista, o antiniilista par excellence.
A arte, como a redenção do que conhece — daquele que o caráter terrível e problemático da existência, que quer vê-lo, do conhecedor trágico.
A arte como a redenção do que age — daquele que não somente vê o caráter terrível e problemático da existência, mas o vive, quer vivê-lo, do guerreiro trágico, do herói.
A arte como a redenção do que sofre — como via de acesso a estados onde o sofrimento é querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delícia.[2]
1.2. O Chantagista: afirmação da vida e aniquilamento.
As idéias apresentadas nos servem para proceder à leitura de “A vida como ela é”, sob o ponto de vista de uma poética do aniquilamento, entendendo na palavra Vida a expressão do que nela há de integral, sem individuação (Zoé), uma vida sem contornos, não específica, intransitiva, imperecível, em oposição a uma Bios, singular, individual, perecível[3]. A Vida como zoé, como força transformadora das aparências, das molduras (bios). A vida como ela é, corrente de forças, conflitos, dissonâncias e estranhamentos[4], vida quando assume as forças que são deslocadas para uma região abissal da alma humana (cabe aqui uma analogia com o inconsciente), devido ao acatamento da moral e da ética, assumidas como verdade da vida da aparência (bios). Tais forças, apesar de deslocadas, por serem perigosas e terríveis — ou problemáticas, como afirma Nietzsche —, são necessárias para que a Vida aconteça. Titânicas, atuam na transformação da natureza — física e humana — quase sempre de forma devastadora, corrompendo o tecido da moldura, a individuação, mas afirmando a vida em seu eterno movimento de tecer, a aniquilação.
Esta separação entre natureza física e natureza humana apresenta-se aqui apenas para fins de observação e comparação, pois, na verdade, o que existe é a ausência de fronteiras, o homem como parte da natureza, o homem no qual a natureza se manifesta, a arte na qual se manifesta o homem. Arte, natureza e vida indiferenciadas, o mesmo movimento.
Se a arte imita a vida, o que se imita na arte é esse movimento, essa ação ininterrupta de forças dissonantes, sem individuação, que é a natureza. A arte como metáfora da vida; a natureza como estética, submetida à constante criação. A arte que faz aparecer aquilo que não tem forma, que não tem aparência. A arte que manifesta o processo, o devir.
No conto “O Chantagista”, percebemos como as forças titânicas eclodem produzindo a ação devastadora, desestruturadora da ordem, instauradora do caos. A ordenação sustentada em verdades que tentam garantir a sobrevivência no mundo elaborado como “normal”, com suas leis e valores. Um mundo marcado pela trivialidade, que, entretanto, pode ser abalado a qualquer instante, desde que uma ocorra uma fratura, e uma fenda dê passagem para a liberação do titânico.
1.3. A vida trivial
Fernando e sua noiva vivem tutelados pela sogra e mãe, Dona Zuleica, espécie de “dicionário vivo” que dá sentido às suas vidas. A sogra organiza a vida do casal, dá a sua ordenação, a fim de que vivam em constante harmonia, tenham uma vida consonante. Seus conselhos são a voz da consciência, que ocupa o lugar do pensamento dos noivos. Têm força de lei: “Como sua ascendência era grande sobre a filha e sobre o genro (futuro genro), eles não faziam nada sem consulta-la antes”[5].
A harmonia da vida é assegurada pela presença ostensiva da sogra, sua palavra orientadora, seus conselhos. Uma vida sem discussões, sem atritos, sem dissonâncias, sem atitudes sexuais ousadas (beijo de língua) caracteriza o mundo organizado de D. Zuleica oferecido aos filhos, o mundo configurado no casamento “normal”. Fernando, o noivo, submete-se naturalmente à ordem, à ordenação da vida, o mesmo ocorrendo com a noiva. Dona Zuleica é o chão onde constroem a relação matrimonial. Desse modo, do namoro até a consolidação do casamento, segue a vida como um rio em seu curso tranqüilo, inalterado. Curso sem afetação. Dona zuleica fundamenta a existência do casal, a sombra da sogra protege-os de qualquer coisa que possa corromper com a trivialidade.
Entretanto, quais são as garantias para que esse mundo não perca o chão, a concretude, a transparência e a harmonia? Que ordenação pode deter a curso da vida?
1.4. A quebra da trivialidade — A perda do chão
“ Agora posso morrer!”
A fala de Dona Zuleica, após a partida do casal, de táxi, para a lua de mel em hotel na montanha (detalhe configurador da moldura “carioca”, ideal de classe média, que vive o frenesi da metrópole e sonha o idílio nas cidades serranas) é um índice de que a normalidade, o trivial, sofrerá o seu abalo. Um primeiro golpe. O rio tranqüilo e controlado vai ao encontro de águas turbulentas de um mar bravio. Com a morte da senhora, o que fica evidente?
Um e outro não possuíam, de si, nada; sem nenhuma experiência da vida, pareciam não ter nenhum sentimento, nenhuma idéia própria .E quando dona Zuleica, acometida de um edema pulmonar fulminante, entregou a alma ao Criador, eles se entreolharam em pânico[6].
Não possuir nada se si, não ter qualquer experiência. Sem a sogra, sem o mundo das certezas e verdades sobrepostas à consciência, as almas são aparentemente vazias. A consciência de Fernando e da esposa estão por demais soterradas, e a voz de Dona Zuleica, mesmo morta, ainda fala e pensa por eles, repetimos, para a sobrevivência do casal no mundo. Interrogando-se sobre o “e agora?”, apenas o espanto, o pavor de se sentirem abandonados. Tateando, caminhando às cegas (pois não têm experiência da vida), começarão a procurar respostas e sentidos. O “dicionário vivo” passa a ser uma fantasmagoria, o mundo atravessado pelo inusitado, pelo inesperado, pela morte. Sem a presença poderosa da ordenação que dava sentido às coisas, terá o casal de “entrar no mundo” e viver, o que significa pensar, sentir e agir. A morte da sogra produz um abalo, a verdade imutável se mostrou frágil. No chão, a fenda: “— Minha filha, estamos fritos! Não sei o que vai ser de nós!”[7]
A desarmonia está instaurada, o mundo consonante pedido. A frase dita por Fernando, que expressa o terror e o espanto diante do vazio em que se reconhece, aponta para uma depressão, porém, ao mesmo tempo vem das profundezas uma primeira assertiva, uma fala promovendo a ruptura com a individuação construída . Do prolongamento dela, a reflexão meio que inaugural, sua iniciação na experiência cognitiva no mundo, seu comentário “filosófico”:“ — Essa vida é uma boa droga!”[8].
Este primeiro encontro do casal, com uma experiência imprevista, fora do controle de Dona Zuleica, provoca uma brecha tão profunda na trivialidade que os episódios em seqüência (ou conseqüência) serão vistos por uma visão aterradora. Uma visão com os olhos do que estava aterrado, melhor dizendo. Sem a moldura, sem a aparência convencionada (a ordenação tranqüila, consonante e trivial), o que surge de novo será sempre um impacto duro na estrutura que ameaça ruir. Solitários no mundo, a fenda se abre, dando passagem à força titânica de vida.
A FENDA
Fernando, alguns dias após o enterro de Dona Zuleica, quer ir ao estádio de futebol (mais um traço da moldura do trivial “carioca”). Nada mais normal do que ir ao futebol, mas ir significaria uma ruptura na tristeza devido à perda da parente querida. Mas pela brecha o divertimento emerge. A mulher tenta impedir, mas o marido se justifica:
“ _ Mas, filhinha, futebol é a coisa mais inocente do mundo,
te juro que não há mal nenhum!
Pg. 103
A presença da mãe, enquanto voz, ainda ecoa na casa e na consciência da filha: lembra-se dos conselhos de que discussão só traz aborrecimentos. Silencia e consente, acompanhando o marido, do portão, até vê-lo dobrar a esquina. Seus olhos se voltam e de repente percebe o olhar de um vizinho. Estava só, irremediavelmente solitária. Os olhos do vizinho, um antigo ex-namorado, a devorava. Fica vermelha. Entra na casa e convoca a mãe, tenta encontrá-la entre os pertences. Há um vazio que precisa ser preenchido. Quer também fugir daqueles olhos “quase imorais”, que trazem-lhe à lembrança os conselhos da mãe: “não presta para você”. Alfredinho, o ex-pretendente, era ciumento, causava problemas. Seus olhos afetariam a tranqüilidade de uma vida normal? Sua repentina presença, a lembrança, é um presságio de abalo sísmico, uma rachadura na moldura da filha. Ela busca a mãe numa atitude mórbida, que a leva em direção às gavetas. Novamente o inesperado, o duro golpe, as cartas da escondidas de Dona Zuleica. Buscando um refúgio, vai direto ao refúgio da mãe, o que esta soterrou. O mundo submerso: Osvaldo.
A visão de Alfredinho, o ex-namorado que a devorava com os olhos, é a mão que conduz a filha ao mundo “fora da ordem” da mãe. Cartas assinadas não pelo memorável pai, mas por um desconhecido. As revelações são desconcertantes. A jovem esposa, aterrorizada, não acredita no que lê.
Novo golpe em sua aparência já afetada, abre-se agora totalmente a fenda, o mundo de pernas para o ar, as coisas fora do lugar. Duro golpe que destrói a moldura de Dona Zuleica, o discurso de manutenção do mundo ordenado e tranqüilo. A fenda deixa vazar o subterrâneo vivo. Desnorteada, sob a ação do revelado:
“Tudo dançava no seu cérebro e houve um momento em que,
numa tremenda confusão mental, julgou enlouquecer.”
pg. 104
Não percebe a chegada de Fernando, que a vê aborta, entre as cartas espalhadas. A cena causa-lhe espanto. Mergulhado na leitura, o que se revela entra no seu corpo como um tônico revigorante. O genro toma posse do passado da sogra. Quer saber mais, quer saber quem é Osvaldo, o amante de Dona Zuleica. Interroga insistentemente a esposa até concluírem ser ele um amigo distante da família, um homem rico. A esposa em lágrimas, o marido em sorriso quase louco. Pela fenda as correntes da vida são liberadas para mudar as aparências. A face da natureza. A mudança de Fernando:
“Dir-se-ia que a avidez súbita, a idéia fixa do dinheiro o transformava,
inclusive fisicamente. Parecia ter outra cara, outros olhos, outras mãos.”
Pg. 105
“Tive uma idéia genial! Luminosa! Depois te digo!
Pg. 105
Aquele que antes “não tinha nada de si” agora tem uma idéia genial. Transformado, é ele uma conjugação da dissonância (a consonância fora corrompida pelos impactos da vida) e de sua fala surge o Fernando chantagista:
“Seria direito? Correto? Ele, cruel, a emudeceu
com contrapergunta: o que Dona Zuleica fizera era direito?
Era correto? Pg. 105
Colocando as verdades esculpidas por Dona Zuleica, verdades que não eram suas, no terreno sem chão onde as aparências estão corrompidas, destroçadas, conclui Fernando:
“— Ninguém presta! Ninguém é direito!”
Pg. 105
Obcecado pelo dinheiro que pode conseguir chantageando o amante rico da sogra,
“— Vou tirar o pé da lama!”
Fernando não percebe o poder de sua nova assertiva. Ninguém presta, não há quem não esteja isento. Todos estão submetidos à mesma força, todos podem ser atingidos pela corrente, todos estão atravessados pela vida. Dominado, marca o encontro com o empresário.
A ANIQUILAÇÃO
No encontro, o chantagista fica sabendo que o sogro explorava o milionário. Outra revelação que só corrobora com a assertiva anterior. Osvaldo, com compostura e ânimo inalterado, vaticina:
“ — Tome nota: sua mulher o trairá.”
A fala em tom profético do magnata Osvaldo, sem afetação, comprovada na ausência de sinal de exclamação, é o golpe final na moldura de Fernando. Como nova revelação, agora só lhe resta tatear: ninguém presta, afirmara anteriormente, ninguém é direito, nem sua mulher. Toda a aparência está aniquilada.
Animado pelas forças que tomam o seu corpo, desinteressado pelo dinheiro, retorna a casa e estaca no portão. De volta às ruas, passa de bar em bar e se embriaga. Não é mais Fernando, está fora de si, se é que em algum momento chegara a ser o que é. A embriaguez libera o titânico. Apoiando-se nas paredes para andar, fica durante meia hora aos prantos, assistindo ao sono da mulher. Um silêncio. Nada se sabe sobre o que se passa em sua mente. A mulher está dormindo, a mulher, estimulada pela visão do ex-namorado, que a tomou de assalto no portão e a levou diretamente às cartas de amor da mãe, da mãe exemplo de virtude, virtude aparente, aparência. Transfigurado, Fernando ferve uma chaleira d água e a derrama sobre o rosto da mulher. A vizinhança ouve os gritos da transfiguração.
Todo o conjunto de revelações desembocam na loucura. As aparências aniquiladas sob a corrente do inusitado. A duros golpes, tudo desaba. Tudo, menos a vida.
1. CONCLUSÃO
Procuramos apresentar uma leitura do conto ‘O Chantagista”, de Nelson Rodrigues, que faz parte de “A vida como ela é”, sob o ponto de vista de uma poética da aniquilação. A aniquilação que na verdade é a destruição das aparências, tomadas aqui como moldura, representação que veste o ser. Moldura que, mesmo que percebida como verdade, não deixa de ser aparência, sujeita à ação das forças da natureza. Tais forças são a manifestação da vida.
No conto, o conjunto de revelações e o adultério abrem uma fenda na vida trivial de Fernando e sua esposa, que, se por um momento estavam protegidos pela presença moral da sogra e mãe, com a morte desta e a conseqüente descoberta de que “ninguém presta”, inclusive eles mesmos, vêem-se defrontados com a dissonância. Conjugando as forças que os atravessam, são aniquilados, assim como toda a verdade que antes os resguardara. De pé apenas a embriaguez e a loucura.
Abrindo uma fenda no discurso da moral, o conto de Nelson Rodrigues, focalizando a vida, apresenta-nos uma visão do homem em uma dimensão mais profunda do que a simples análise psicológica sobre o caráter. Não apresenta um desvio da conduta ou da norma, mas a irreversibilidade das ações que nutrem a existência humana, que vive para além da norma.
Como comentário final, cabe ressaltar a funcionalidade da linguagem de “O Chantagista” e mesmo dos demais contos de “A vida como ela é”, a expressão coloquial, que, sem cair em um realismo rasteiro, epidérmico, supera os limites entre o literário e o discurso cotidiano, sendo, portanto, simplesmente linguagem, criação humana, produção estética.
[1] NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. p.47, Os Pensadores, Nova Cultural, SP, 1996.
[2] NIETZSCHE,Friedrich. A Arte em “O Nascimento da Tragédia”, in Obras Incompletas, p. 50.
[3] Segundo Carl Kerény, o termo Zoé tem uma ressonância diferente de Bios, o primeiro significando a vida em geral, sem caracterização ulterior, o segundo tocando os contornos, os traços característicos de uma vida específica, as linhas fronteiriças entre um vivente e outro.
[4] Estranhamento, desvio da norma, cf. Formalistas Russos.
[5] RODRIGUES, Nelson . A Vida como ela é — O homem fiel e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
[6] Ibidem, p. 102
[7] Ibidem, p.102
[8] Ibidem, p. 102