domingo, 30 de janeiro de 2011

A VIRGEM DO MAR


A virgem do mar, na esteira das águas me olha com olhos de sede. Mergulhada na sombra da noite, entre as ondas se alucina, sonha seu encontro com o soberano das marés, o princípe perdido. Dizem ser uma alma imortal, há séculos encantando as mulheres perdidas, vasculhadas em suas entranhas até a morte soterrada no fundo, esperanças destroçadas. Essa alma é solitária, apesar de colher no coração a paixão das tantas sufocadas, tantas perdidas em ilusões. Sente pena e se aproxima, oferece os braços fortes, o peito amigo, lança-se sem rodeios simulando sinceridade. No fundo, o desejo que sabe, o desejo que purifica a morte de que se alimenta.

Hoje ela está aqui, à beira do precipício. A virgem do mar espera os braços do seu sonho. Morre a cada dia, morre todas as noites.Lágrimas, nas ondas em que adormece entrega o sonho.

Sei que ela se jogou bem antes, seu destino de deusa traçado na linha turva das marés, todos os dias ele vindo com o enorme peixe, a barba grossa como a pele endurecida de sol, os cabelos dourados. Ele, que dias e dias passa em lugares que se perdem no olhar, o horizonte mergulhado no precipício, ele não conhece do mundo nada além dos ventos, das ondas, das mudanças repentinas de tempo. E traz tudo isso nas mãos. Não se dobra diante das grandes vagas que investem nos mastros com força titânica. Deposita sua fé nas sereias. A virgem do mar sabe de tudo isso, ela mesma se divinizava com uma cauda de peixe, pequena ao sol, nas pedras, e dali tentava fisgar os cabelos do seu pescador.

Tentou de todas as formas segurar a alma livre do pescador, prometeu acorrentá-lo nas paredes de uma casa, em terra firme, criar raízes, casa cheia de quadros coloridos, marinas que poderiam ser o simulacro de vida do homem, cabelos ao ventre oferecido, a boca mordendo a língua até sangrar a palavra, tão seca de amor, transbordando o desejo. Dormir no peito cabeludo, e ele serivi-la com seu corpo em eterna eternidade.

A virgem menina buscava conchas na praia, esticava os finos braços ao sol para sentir na luz o calor do adorno que logo estaria em volta do pescoço, a estrangulá-la, a palavra. Um dia, como tantos dias vividos na imensidão da areia, ela deixou que no cordão se enlaçassem braços, fortes e seguros, queria para sempre aqueles braços. Na distância aguardava a visão de um barco se aproximando, e entre as pernas percebia sua chegada. Doce, cálida, o mar sereno se abria para receber na praia o seu deus. Com as armas que trazia nas mãos, o pescador desbravava um mar desconhecido, mundo insondado, a terra prometida. Gozava das delícias do banquete oferecido pelas ninfas aos grandes guerreiros, a ilha que abrigava os argonautas. A ilha negra, seus canais escuros se abriam à luz. E como rejeitar os perigos desse mundo novo, e como manter-se distante da escuridão que vem após a glória do dia?

A travessia do mar aconteceria todos os dias, tantos que se perderiam nas contas. E como era bom, era a frescura após centenas de milhas a remar na busca do grande peixe, e alimentar mil bocas do seu povo. Ele um navegador, amado como um deus. Ele, senhor das marés, seus compromissos escritos nas estrelas, na noite que tem o gosto de despedida, a virgem jogando suas lágrimas nas águas, chorando o adeus de quem nunca se deixará, nunca atracará o barco em praia serena, longe disso, virá beijar-lhe a boca, fazer-lhe filhos, mas retornará sempre para a imensidão das águas, onde a vida grita o seu nome, clama seu amor mais profundo, a sua alma.

Vejo os braços estendidos às ondas. Crespas, logo o abraço que a levará para o fundo. Virá então esse lindo jovem, que já beijou as fenícias, consolou esposas de Argos.

As impressões do sonho. Ela se levanta rápido, lava o rosto, escova os dentes. O Banho. Ainda assim parece envolvida em braços amorosos, a mesma sensação que sentira à noite, diante de uma praia, ondas chicoteando a língua. Mas agora não havia o desespero que fizera com que se atirasse às águas. Havia pedras, ela pressentira a presença de alguém, desses mistérios do sonho, talvez, com certeza, sua mania de transformar os desejos em objetos perdidos. Revirava o tapete, lembranças arquivadas como lixo, sob os pés, falsamente seguros. Deveria tomar decisões no dia, o dinheiro de muitos em suas mãos. Mas a sensação era outra, renascida. Na alma dizia a si mesma, fez-lhe bem aquela morte.

Chamavam-na a virgem do mar. Uma deusa. Menina pura, inocente, coitada, se envolveu com um pescador. De verdade era homem casado, dizia um morador da praia. Modesto. Sim, o nome era esse, Modesto como o pai queria. Vítima da paixão, reclamou uma senhora descabelada, a garota grávida não tinha para onde correr, somente o mar imenso, ali na frente, daria abrigo. Soube que queria ser uma sereia, era menina bonita, desde pequena andava com os cabelos brilhantes, a pele dourada. Dizia sentir sempre a presença dele sobre ela, e corria. Eu bem que conhecia, ela falava em um deus marinho. Acho que era louca.

Hoje a loucura toma conta de mim, não quero nada. Essa vontade me leva, sempre me dá essa vontade de ir, para além, e eu nunca. Já perdi a menina de dentro, hoje mulher, quem diria que o senso de liberdade se tornaria um flerte inútil nos meus olhos. Nunca fui livre de fato, nunca senti nada maior do que esse sufoco no corpo, esse fogo. Busco as águas, hoje eu acordei de um sonho, ou mergulhei inteiramente nele, sei lá, alguém me espera, alguém me dá esperanças, do elevado do Juá eu posso divisar novo horizonte, e posso crer que me jogaria, se pudesse, do alto das pedras, me jogaria sim, porque eu vejo os braços desse mar marginal da vida, minha fronteira.

Eu me chamava virgem do mar, eu fui enganada. Entreguei minha vida a um pescador, homem bonito, braços fortes. Essa mulher pura, inocente morre dentro de mim, mas ela ressurgirá das águas, minha paixão, vejo meu herói. Esse homem, eu ainda o vejo em sua embarcação solitária, enfrentando furacões, ele, com seus músculos em sobressalto, os cabelos eternos sob o sol. Mas eu me enganei.

Renato França

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O DUELO



É uma noite de tristeza. Próximo à janela, o sorriso demente de uma criança esfomeada. Na miséria, o som desse piano e das cordas de um violão, vindo da casa em frente, cria um cenário fantástico: os olhos secos e minguados e o som, como se vivessem o paraíso. Aquela casa iluminada é tudo que os olhos sonham, é tudo almejado na vida. A música muito mais, essa música sem voz, sem palavras. Sons e gestos somente, gestos até violentos, as mãos ferindo com força o teclado. A resposta incisiva dos acordes da guitarra.

É um duo aristocrático, exibicionista, um concerto solitário de dois amigos. Resolveram falar nessa linguagem sagrada, de deuses, sabem os amigos que não há no mundo quem entenda as razões, o mundo de pura mesquinharia. Ali, depois do muro, uma família maltrapilha vive de restos. Talvez por isso insistam na harmonia clássica, cujos acordes remontam alvoradas festivas de dias sonhados em épocas imemoriais da infância, quando se disputava com o fio da espada o desejo e a atenção da mulher. O tempo pode ressurgir, horizontes ainda por nascer, uma música cheia de espaços a serem preenchidos, música para poucos ouvidos.

Mas a criança, cheia de fome, olha para o lado de dentro da janela, ponto final de seu mundo, olha e sente pena de si por não estar sentado à mesa da casa onde dois amigos estão mudos, tomam vinho e se debruçam sobre instrumentos, deixando no ar uma música estranha aos ouvidos. Gostaria de estar lá, falar naquela língua, vestir-se como eles, deixar de sentir dor, abandono, de sacrificar a boca minguada, seca e cariada. Acho que gostaria de ser filho dessa gente, tocaria o seu tamborim de lata de goiabada, juntar-se às almas tranqüilas, pelo menos é assim que olha para o outro lado, o radiante da vida, bem melhor do que o vendaval da sua, que o leva para longe dessa gente feliz, sem fome.

Na sala os dois amigos se investigam. Cada acorde recebe o troco do olhar, uma atenção ensandecida, concentração à flor da pele. Uma tensão que se desenha em cada escala percorrida. Pela música se tocam, há um gosto estranho nas gargantas trancadas, engolindo palavras. Entorpecem-se. Um gole de vinho, estanca um silêncio, para morrer na música de Manuel De Falla, uma luta de andaluzes, ressonando no olhar beirando o trágico. Uma traição separa os dois ciganos, a aflição de palavras que não se alcançam. De longe, o olhar de uma criança solitária, que deseja ser como seus heróis, os homens fortes do lugarejo. Grita meu Deus, por que não sou assim, mas assim como, meu filho? Isto aqui é um inferno, há um punhal sobre os nossos olhares, pronto para se fazer sentir aterrado no coração, aqui não é o lugar do seu sonho, de sua imaginação, não somos nada do que pensa, na realidade aqui são dois homens prontos para se matarem, mas que sem coragem duelam com acordes de guitarra e piano e encontram nas peças que tocam a lâmina mortal da arena.

Esse menino, secando o tira-gosto e o vinho, o que quer? Quem de nós será mais feliz?

Os bichos vêm a seguir. São gatos da vizinhança, atraídos pelos sons. Pela insinuação de vida e do que nela corresponde a alimento, pois como a família miserável, estão sem comer. Correm o risco de serem comidos, há foices nos olhos. Mas na casa da frente não. Um prato de sardinhas fritas está entre os dois copos. Eles tocam uma música estranha, cheia de motivos mórbidos, alternados com uma sensualidade disfarçada nos giros de luz, o lustre refletido no pinho dourado da guitarra. Um foco nos olhos desses animais amantes da liberdade, agora platéia da arena onde dois infelizes se ameaçam, olhos e punhais sacados da decoração da rica sala. Da música, apenas o gesto final, a imagem do toureiro esticando com cruel delicadeza sua espada, cravando-a no dorso do touro, uma, duas, três, quatro vezes, o coração atingido, o amigo estirado no centro, de olhos a platéia, de joelhos o último e certeiro golpe. O chão tingido de rubro, e o olhar do menino.

O cenário, a arena estão ali. A testemunha atenta corre em direção aos imaginários brinquedos para pegar o seu tamborim. O menino quer fazer parte deles, o menino quer ser como eles, os amigos que tocam música, e ele corre em direção à casa em frente, ele pula rapidamente o muro, a música parou, ele pensa, a música me chama, ele grita, ele sabe que pode fazer voltar atrás o gesto final, não quer ver o seu sonho desaparecendo como um filete de sangue na fina areia. Porém é com amargura que cresce diante de si os olhos sobressaltados da morte estúpida, o corpo como um touro estirado sobre o assoalho brilhando, o corpo de um touro pedindo clemência, a boca desesperadamente aberta, o rubro escapando, muda, produz sons estranhos, não é mais a música sagrada, são os restos de um duelo. Os pés contorcidos e as garrafas de vinho, gatos devorando as sardinhas fritas.

O menino chega próximo ao corpo caído e se pergunta. Sabe, a resposta nunca virá. E sua fome jamais será morta. São minutos que antecedem a chegada da polícia, e como, os gatos, sabe que é melhor fugir dali. Deixar o corpo caído, o sangue sobre as teclas do piano. Quem acreditaria que ainda viu o olhar alucinado do homem cruzar a porta após estilhaçar o violão, os pedaços estirados no jardim da casa?

Uma noite triste, enfim, para um menino sonhador, que toca um tamborim de mentira, cercado por gatos e restos.

Renato França

domingo, 23 de janeiro de 2011

Manhã de domingo



Manhã de domingo. Ele ajusta os cabelos com o creme de todos os dias, estica a meia, amarra os cadarços do tênis azul. A semana inteira desejando essa hora, de soltar o corpo nas alamedas vazias, sem o ensurdecedor dos automóveis, sem as fisionomias distorcidas da massa, diariamente perdida e ensimesmada. Sem as loucuras de páginas desperdiçadas nas bancas, os tipos escuros das manchetes ,os sinais da agonia de cada dia, de cada homem.

Manhã de Domingo, sem mãos pedintes no sinal ou na fila da padaria, o pão fumegante avilta olhares de fome. Sem a preocupação de dizer "rápido, que não tenho tempo”. Tempo que se esgota no sinal vermelho de conjecturas, “que falei? que dizer’?

Do espelho do banheiro, no momento de dar um último retoque na mexa teimosa a desprender-se do todo, vê os reflexos do sol nascente desta linda manhã de domingo, parece acordar agora, sem as máculas semanais dos gritos abafados pela crueza, traduzida violência, sim, eu ontem vi pelo retrovisor o corpo de um homem estirado na rua, parecia um porco abatido, branco e inerte, senti vontade de parar, balançar aquela carcaça, mas, parece, os urubus cercaram-no para lhe devorar as vísceras. Tudo já tão distante deste domingo. Hoje espera caminhar no silêncio, na atmosfera da festa íntima de seus segredos, remoídos enquanto abre a passada atlética.

Manhã de domingo em fuga. Passional, acredita, o dia paralisa os sentimentos. Não há aquele exercício do olhar, reconhecendo entre documentos a semelhança da vida, o simulacro em papéis, vida que não pode ser, porque são números, estatísticas, gráficos, desenhos. Em sua crença, homens são iguais,: incomodam-se, reagem, batem, reclamam; respiram, sentem fome, dão soco na mesa, urinam na tampa do vaso e ganham na identidade um desfocado número, sem imagem e cor. Lidar com papéis torna a vida mais fácil, não há espelhos. De vida mesmo, as incômodas lembranças de pareceres a dar, prazos a cumprir, coisas que tomam todo o tempo.

Agora, olhando para as pálidas árvores que crescem em meio ao cinza do concreto, percebe que poderia singularizar mais a personalidade, desconfundir sua rotina contabilizada.

E há vida do lado de fora. Da janela do escritório, caso se deixe levar, é possível enxergar muito mais que passantes desfigurados. Sim, são rostos de gente, sofrida, oprimida, festiva. A multidão tem uma cara só ou mil . É possível que aquele velho seja o seu pai, que este nome impresso no papel agarrado a sua mão, como se fosse um gesto desesperado, seja o de alguém de carne e osso, que infelizmente embarcou num transatlântico furado e agora depende de seu parecer e assinatura.

Pode ser que neste lindo domingo de sol, no meio da caminhada pelas ruas cinzas decoradas de árvores pálidas, meros espectros de uma natureza petrificada de feriado, ele se dê conta de que a vida está muito além do espaço possível a percorrer, que não é a calçada limpa e sugestiva por onde corre a sua imperial majestade, diplomada na melhor universidade. A vida, maior do que o alcance de seus olhos de cifras, empréstimos, juros e negociatas. A vida abarca o oculto dos papéis, o insondável aos olhos, ao toque de Midas.

Manhã de domingo, os cabelos molhados pelo suor nem lembram a efígie de um homem encarcerado. Caminha de volta para casa Talvez alguma coisa esteja diferente, quem sabe algo mudou. Modificado o rumo, procura um banco de praça.,compra um jornal, sintonizar-se com a vida novamente, envolver-se nos tipos escuros do gordo jornal, que traz com certeza alguma coisa sobre aquele homem inchado feito um porco abatido, e reconhece, somos uma carcaça pronta para os urubus .

É uma manhã quente de domingo, mas se anuncia, no boletim do tempo, uma grande chuva para o final da tarde.

Renato França

SIMULACROS: UMA RADICALIZAÇÃO DA FICCIONALIDADE



SIMULACROS: UMA RADICALIZAÇÃO DA FICCIONALIDADE

Renato França

A ficção brasileira, ao final da década de setenta, encontra-se diante de um impasse: para onde ir? Como superar as fórmulas já esgotadass do “realismo verdade”, documental e de base naturalista, tradicional em nossa prosa, presentes ainda em romances “modernos” como os jornalísticos[1], ou mesmo livrar-se do peso do alegórico, do ‘isso quer dizer aquilo’, comum e até necessário em período nebuloso, marcado pela censura imposta pela ditadura militar?

Como, ao mesmo tempo, desviar-se dos excessos de ‘engajamento’, resultado do patrulhamento ideológico austero da “brigada crítica” da esquerda brasileira? Engajamento, que é um dos traços que mais bem definem essa literatura brasileira nascida sob o signo da missão, da atualização, da redenção?

Falamos aqui dos excessos que limitam o olhar sobre estético. E sobre a literatura.

Mas e o caminho de superação do impasse? A própria literatura daria a resposta; e o que se percebe, nos anos finais da década de setenta e princípio dos anos oitenta, por essa época já respirando a anistia e a abertura democrática, é o mergulho na experiência criadora, uma radicalização da ficcionalidade, tomada como consciência (des)construtora do real. Melhor dizendo, a consciência do real também como aparência, como imagem, como material manipulável nas mãos de um “artista”, de alguém que lhe depreende os materiais, desloca-os, aloca-os, de acordo com sua vontade ou interesse. Um mundo enquanto estética, enquanto forma, uma realidade manipulável, construída, repetindo, ou refazendo o percurso da ficção. Uma consciência da experiêncioa humana sempre mediada pela linguagem.

Tal postura da ficcionalidade propõe a renúncia ao projeto estético-ideológico de produzir a literatura-verdade. Com um olhar mais desconfiado, afiado em corrosiva ironia, por vezes perversa porque aniquiladora de ideais, sem lugar para a utopia própria da produção artística da vanguarda, que se estende do primeiro modernismo até a tropicália, herda desta sua propensão ao experimentalismo, à pesquisa estética, ao trabalho crítico com o significante, no caso da narrativa, com a forma tradicional do romance. Desarmado do aparelho crítico engajado, portador de “verdades”, armou-se o ficcionista de um olhar sobre seu próprio trabalho de inventor, e sua perspectiva passa a apontar para a própria ficcionalidade, para o próprio texto, como se não houvesse realidade outra que não a estética, e desvendando a realidade enquanto ficção.

Dobrando-se sobre o ficcional como ato crítico, o que se apresenta, ou se tematiza, é a ficcionalidade da vida, atravessada pelas contradições, dramatizações e pelo aniquilamento do indivíduo, transformado em mero personagem que só se manifesta entre paredes que delimitam o seu universo, que controlam os seus passos. Paredes que são a construção de um outro, manipulador poderoso — limites fixados por um criador, autor ou narrador — limites que não ultrapassam a teia narrativa que enreda a vida. O ato crítico de narrar denuncia então o quanto de ficcional há no que se considera mundo real.

Esse o foco de uma literatura a qual tenta responder a questão sobre a possibilidade de se encontrar caminhos que não sejam o documental e o alegórico já tão percorridos em nossa prosa.

Escapar ao excesso de documental e de alegórico, lançar mão de silêncios e elipses, essa é tendência contemporânea de nossa narrativa. Metanarrativa, devora a si mesma como a serpente que morde a própria cauda, imagem cara a Paul Valery para caracterizar a sua poética e a da modernidade — olhar a realidade como obra ficcional através dos olhos da ficção, ato crítico que desdobra aos olhos do leitor um mundo de representações.

Uma narrativa da pós-modernidade? Uma narrativa do contemporâneo?

Tais considerações sobre a ficção do final dos anos setenta e início de oitenta orientam a leitura que fazemos de “Simulacros”e “Breve História do Espírito”, romances de Sérgio Sant’Anna, o primeiro publicado em 1978, e que dá seqüência a uma produção instigante, desde “Cartas de Manfredo Rangel a respeito de Kramer”, livro de contos, e “Confissões de Ralfo”, romance autobiográfico imaginário; o segundo de 1991,publica do pela Companhia das Letras, obras nas quais emerge toda a questão do fazer literário, da construção do texto como uma reflexão sobre a vida, da escrita enquanto ato crítico, escrita irônica que dialoga com a tradição de nossa prosa.

Que são simulacros?

Simulações de realidade, manipulação, jogo de construções possíveis ou não em que personagens experimentam a vida com o que ela tem de absurdo, contraditório. O verbo experimentar aqui atua como elemento estruturador da narrativa de “Simulacros”, pois, ao estabelecer um contato com o romance experimental da tradição naturalista, desvia-se deste em sua intenção de não fotografar a verossimilhança do real-verdade. Próximo da paródia, corrosivo em sua ironia, o laboratório aqui faz experimentos com realidade vista como peças de um mosaico, que podem ser alteradas de acordo com a vontade do criador. Neste sentido, o romance de Sérgio Sant’Anna singulariza-se pelo jogo que promove com essas peças, relativizando o que é real e o que é aparência, para no final suprimir a possibilidade de existência da primeira, retirando as fronteiras entre uma e outra — deixando-se ver apenas a teatralidade e a manipulação:

“Na crônica daquela casa não se escreviam pessoas, profissöes, mas tipos, personagens, protótipos esteriotipados a simularem papéis, dirigidos por um espírito malfazejo, inventor maluco, gênio do mal”. (p. 82)

Personagens são tipos. Não têm nome e estão submetidos a um contrato junto ao cientista, inventor maluco e espírito malfazejo; são obrigados a viver sob a aparência: JP, jovem promissor, Vedetinha, Prima Dona e VC, velho canastrão. O dr. PhD, mestre da manipulação, cria situações a fim de observar o comportamento humano. São situações absurdas, tais como uma aventura no parque municipal durante a noite, encenando “Chapeuzinho Vermelho”, ou então um passeio pela cidade com as personagens travestidas, ficando ele, o criador, o cientista, na antecena, observador, do alto de sua autoridade outorgada pela “compra” das individualidades. Quaisquer ações ocorrem sob a sua orientação e ordem, sendo, portanto, vedada a possibilidade de manifestação de desejos, ou melhor, esses se manifestados só podem ser atendidos de acordo com a vontade do cientista. Vontade soberana.

“Ele parecia pesquisar em todos os tipos de livros: teatro, psicologia, ciências sociais, religião e até literatura”. (p.22)

As experiências existenciais do grupo são respaldadas por pesquisas comportamentais, realizadas em várias disciplinas do conhecimento humano. Da pesquisa social resulta o grupo, que constitui uma família, nos moldes tradicionais: o velho pai, a mãe; a filha e o noivo pretendente. O noivo, Jovem Promissor, assume o papel de narrador, um narrador que, em tensão com o seu criador, talvez o sujeito autor, luta por sua individuação, promovendo, ao longo da narrativa, uma rebelião contra essa mão poderosa de quem manipula, o Dr. Phd, e que dará o caráter inusitado ao final do romance, quando, após a sua morte, ressurge no sorriso de um simulacro de filho, do filho do casal JP e Vedetinha, como uma permanência inexorável do poder, que apenas muda de aparência. O narrador é um revoltado contra o aprisionamento da realidade ficcional, quer ser criador também. Mas é bom lembrar que a condição de narrador é dada pelo cientista, que considera o jovem promissor um “artífice manipulado por um ser supremo”. Difícil, então, para as personagens, livrarem-se das artimanhas desse ser supremo. Difícil escapar das regras do mundo ficcionalizado, no qual

“(...) o seu criador já admite desde logo que possui direitos sobre seus personagens, sobre mentira e verdade” (p.60)

Interessante que a condição de narrador de Jovem Promissor, apelido dado aos jovens escritores que prometem, não lhe permite a direitos, nem sobre si mesmo, nem sobre as outras personagens. Sua autoridade de narrador é desconstruída pela inserção na realidade manipulada pelo ficionista, que é quem lança os dados do destino. O narrador insiste em encontrar sua autonomia, mas sofre a crítica do criador:

“ E aqui aproveito para tecer uma leve crítica ao trabalho do Jovem Promissor. Uma certa tendência para a divagação, a explicação, quando todos sabemos que a boa técnica de um relato deixa ao leitor as interpretações” (p.56)

Abstraindo-se da trama envolvente de Simulacros, do fio narrativo que conduz de forma muito clara e estruturada a um clímax surpreendente, e que merece um estudo à parte, fica evidente que interessa aqui o jogo ficcional, no qual a realidade é montada e desmontada. Um jogo com a linguagem e com a representação: a possibilidade de construção de uma realidade, no plano da ficção, projeta-se no plano da narrativa como condutora das ações, ou seja, a construção da realidade movimenta as peças de forma lúdica, sendo a narrativa tecida pelo artífice, que é narrador, personagem e mesmo o outro do autor — Dr.PhD — o outro que atua como jogador, voz de fora/ dentro da narrativa. Uma voz que orienta o narrador.

A narrativa aponta para a construção do ficcional: cenários, situações existenciais, experiências conflitantes, índices comuns a qualquer narrativa tradicional, em “Simulacros” ganham o status de personagem tematizado, atuando junto as outras personagens que, como representação ou aparência, sofrem com sua despersonificação:

“ Ah, quer dizer que somos cobaias, heim?” (p.96)

Narrador e personagens têm a consciência de que são meras peças no jogo de xadrez do criador, por isso a necessidade existencial de livrarem-se dessa mão dominadora. Como se percebe pelo título, “Simulacros” pretende, através dos conflitos e tensões existentes entre os elementos da narrativa ficcional, levar a limites extremos a verossimilhança realista a ponto de ultrapassá-la, deixando-se à vista apenas o mundo de aparências, a ficcionalidade. Monta um painel em que são problematizados o ato de criação e representação no ficcional. A opção é a radicalização da ficcionalidade, sem deixar de expor as brechas por onde vazam inserções sobre o tecido social brasileiro, desmascarando a sociedade que se movimenta no véu das aparências, que teatraliza a vida, absorvida que está pelos papéis e scripts escritos ou ditados pelas mãos de poderosos manipuladores. Um mundo de simulacros — um mundo de pura representação.

Longe de se concentrar em esteticismo vazio, em experimentalismo puramente significante, traça o encontro da narrativa tradicional com a pesquisa estética mais radical, sem se filiar a nenhuma das duas formas de narrar. Há, portanto, um aproveitamento das tradições realista e modernista, esta mesmo em sua vertente mais radical, a de um “Serafim Ponte Grande”, de Oswald de Andrade, por exemplo; aquela pela adoção, mesmo que sob a forma de paródia, do romance experimental:

“(...) Ao mesmo tempo em que se narrariam, num estilo litero-jornalístico, fatos verdadeiros, estes fatos seriam provocados por uma intenção imaginária-ficcional e de caráter eminentemente científico-experimental. Tanto é que a encarregar-se da escrita do livro fora chamado um dos pr’prios voluntários de toda a experiência e que seria experimentado nesta atividade mesma: escrever. O que tornaria este livro experimental na acepção mais exata da palavra. Pois experimentavam-se não só os experimentos, como também as personagens e até o autor. Este considerado aqui não como um livre criador, mas como artífice manipulado por uma entidade ou ser supremo, uma espécie de deus (...) que apenas sintonizava seu auxiliar em determinados canais de captação e compreensão”. (p. 95)

Estabelece assim o diálogo, avançando para um caminho cujo percurso conduz a uma reflexão sobre a literatura como expressão da vida, e não como reflexo dela. Olha para a “realidade” sem a intenção de conduzir bandeiras. E se a desmascara, não é pelo viés ideológico comprometido com o “dizer as verdades”; se mostra as contradições sociais, mostra-as como as contradições da própria vida, que se esteticiza cada vez mais no universo da (pós) modernidade.

Cabe dizer, aqui, para fins de conclusão, que essa atitude crítica de uma narrativa que se debruça sobre si mesma a fim de, através da meta-narrativa e da ficcionalidade buscar um sentido ao que denominamos real, é um traço pertinente que nos ajuda a perceber a ficção produzida no pós-ditadura. Mais perceptível e fundamental, entretanto, é o constante diálogo estabelecido do contemporâneo com a tradição, com as formas tradicionais da narrativa, mesmo as de tom confessional e memorialista. Sem as características de um movimento organizado, de um “ismo” a mais na história da literatura brasileira, o que caracteriza o contemporâneo é a sua fluidez, a sua consciência de passagem, ou de margem, de terceira margem. Consciência de ser ficção.


[1]