quinta-feira, 30 de dezembro de 2010


Uma leitura da vida, em “A vida como ela é”

Uma escrita do cotidiano, do que há de inusitado na trivialidade da vida. Esse o traço que percorre as linhas de “A vida como ela é”, conjunto de contos de Nelson Rodrigues, publicados durante dez anos, entre 1951 e 1961, no jornal Última Hora, de Samuel Wainer. A vida trivial que sedimenta o dia-a-dia de famílias tradicionais do Rio de Janeiro dos anos cinqüenta, quando se respiravam os primeiros ares da modernidade industrial no Brasil. Repartições públicas, escritórios, Maracanã e futebol, a vida da mulher em casa ou no trabalho, filhos e filhas, genros e sogras, apartamentos, paixão, ciúme e traição formam o cenário por onde transita o homem mergulhado nos jogos de interesse, querendo participar do mundo burguês, das suas ofertas, uma vida vertiginosa, afetada pelos preconceitos, pela moral e pela ética, pelos compromissos assumidos ao desempenhar o papel social. O mundo das representações, e a falha, fratura ou brecha por onde vaza o inusitado da vida, o elemento desestruturador.

O tema do adultério é o foco dos contos escritos em linguagem popular, quase anedótica, característica do estilo do autor, com certeza desenvolvido nas redações dos periódicos, circunstanciado na vivência dos fatos corriqueiros das páginas policiais (não é por acaso que estas histórias eram publicadas junto à seção de crimes). Estamos, neste sentido, distantes de uma experiência estética da linguagem, no que diz respeito à pesquisa e experimentação de novos recursos estilísticos ou narrativos, comuns à escrita da prosa da modernidade e que se observa em escritores como Guimarães Rosa ou Clarice Lispector, por exemplo. Entretanto, não há como negar que o aproveitamento dos recursos da redação jornalística ganha em Nelson Rodrigues um status que o eleva ao patamar da literatura, da grande literatura moderna brasileira. Além disso, a adoção da forma de narrativa tradicional estabelece um vínculo com a realidade, dialogando com o estilo realista de um Machado de Assis, em sua aguda leitura psicológica das personagens que vivem a trama armada com preciosismo inconfundível. Narrador onisciente, análise arguta, economia da linguagem; sobre este tecido narrativo, mais precisamente em suas dobras, é que Nelson Rodrigues arma a sua objetiva para flagrar manifestações que se encontram na maior parte do tempo escondidas, esperando o momento para que venham à tona e eclodam. O adultério, como tema explorado em quase todas as histórias de “A vida como ela é” aparece como uma das ações que promovem a passagem dessas manifestações. O adultério, marca mórbida de personagens ditas “normais”, uma abertura psicológica levando à tragédia cotidiana, ao mergulho intenso na loucura. A loucura, resto, o que ficou após a eclosão, liberação das forças da natureza rejeitadas à sombra.

Sobre os temas do adultério, da paixão, do amor e da loucura, já tão bem explorados em nossa literatura, cabe dizer que em Nelson ganham, em nosso entendimento, os contornos não de um desvio na conduta moral do homem, visão muito cara à tradição realista-naturalista da literatura brasileira, mas como exploração de um traço pertinente da alma, algo comum, do qual ninguém está isento. Ambiente ofuscado pela consciência, pela “verdade”, perigoso ao ser tocado, pois são trágicas as suas conseqüências, quase sempre conduzindo à aniquilação.

O ato que produz a fratura na vida, tornando-a, ao final das contas, notícia, ou seja, matéria “normal”, podendo figurar nas páginas de um noticiário qualquer. A vida como matéria, vida como ela é, sem mistérios, sem transcendência. A vida e a tragédia, comuns, como elas são, entrelaçadas, duas faces do mesmo rosto, duas expressões da mesma vida, demonstrando ser o trágico uma das forças que movimentam a existência humana e a conduzem a seu um inevitável destino. O trágico, o “dizer sim à vida, até mesmo em seus problemas mais estranhos e mais duros, a vontade de vida, alegrando-se no sacrifício de seus tipos mais superiores à sua própria inauxerabilidade (...)”[1].

Retornando à característica dos textos de “A vida como ela é”, percebem-se neles a força, o fôlego e um enorme poder de síntese, cheio de sugestões poderosas, diálogos cortantes e ligeiros. Caricaturados estão o amigo canalha, a sogra, a vizinha, a mulher feia, o marido honesto, a mulher sem pecado (título inclusive da primeira peça de Nelson Rodrigues), a mulher da vida. Paixão e morte atreladas à força do trivial, movimentando as relações humanas mediadas pelos interesses e pelo desejo. Dinheiro, automóveis, apartamentos, casas onde residem o pai e suas filhas casadas, tias solteironas, cunhados tarados, jovens dissimuladas em tenra idade são o palco onde a vida é encenada sempre em sua “normalidade”, até que surge uma fratura, que dimensiona o real para o quase irreal da realidade.

Dizemos quase, porque o que se observa é, de fato, a corrente da vida, que não rejeita a tragédia como engrenagem de transformação das aparências, como uma das ações da própria natureza, ou melhor, como integrante da natureza, ou alma, humana.

A via de abertura da fenda por onde vaza a força da vida, em “A vida como ela é”, o adultério, é apresentada sob diversas formas, mas sempre como uma experiência desorganizadora da realidade, desconfiguradora do mundo das aparências, que conduz à aniquilação da moldura do homem, moldura (aparência) que oculta a sua morbidez e obsessão e que, de forma trágica, torna-se patente em nova moldura, em nova aparência.

A tragédia torna-se assim uma necessidade para que se manifeste aquilo que na aparência está na sombra, escondido, velado, recalcado ou reprimido. A perplexidade, o espanto, tudo que soa como dissonância, desvão, desvio. Nunca uma falha moral, nunca uma ausência de caráter, mas um traço pertinente do homem que o leva ao encontro de sua natureza, uma natureza que não desdenha a catástrofe, o desmoronamento, a destruição.

Assim percebemos as personagens de “A vida como ela é”, homens que vivem a vida no que ela tem de comum, de forma tão intensa que, em dado instante, como ação da própria vida, um acontecimento libera uma força que vaza. Ao vazar, “nada fica de pé”, qualquer discurso que tenha se construído como verdade, alicerçado na moral e na ética, se apresenta somente como falácia, como uma regulação que tenta assegurar a sobrevivência no mundo, mas que não resiste ao oculto liberado. De forma devastadora, são reveladas as facetas, que sempre estiveram presentes enquanto sombra, vivas, ainda que sob a forma de silêncio, na trivialidade, esperando a força do inusitado para emergirem. Desta imersão, a manifestação da natureza humana em sua forma integral. E mais que pura manifestação,a integração do homem com a natureza, no que esta tem movimento e transfiguração constante. Ou seja, vida, simplesmente. Uma vida afirmada, acatada em suas forças em contradição, em suas diferenças, não como forma de forças polarizadas, mas como unidade.

Tal vida é transfigurada na arte:

A arte e nada mais que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, a grande estimulante da vida.

A arte como única força superior, contraposta a toda vontade de negação da vida, como o anticristão, o antibudista, o antiniilista par excellence.

A arte, como a redenção do que conhece — daquele que o caráter terrível e problemático da existência, que quer vê-lo, do conhecedor trágico.

A arte como a redenção do que age — daquele que não somente vê o caráter terrível e problemático da existência, mas o vive, quer vivê-lo, do guerreiro trágico, do herói.

A arte como a redenção do que sofre — como via de acesso a estados onde o sofrimento é querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delícia.[2]

1.2. O Chantagista: afirmação da vida e aniquilamento.

As idéias apresentadas nos servem para proceder à leitura de “A vida como ela é”, sob o ponto de vista de uma poética do aniquilamento, entendendo na palavra Vida a expressão do que nela há de integral, sem individuação (Zoé), uma vida sem contornos, não específica, intransitiva, imperecível, em oposição a uma Bios, singular, individual, perecível[3]. A Vida como zoé, como força transformadora das aparências, das molduras (bios). A vida como ela é, corrente de forças, conflitos, dissonâncias e estranhamentos[4], vida quando assume as forças que são deslocadas para uma região abissal da alma humana (cabe aqui uma analogia com o inconsciente), devido ao acatamento da moral e da ética, assumidas como verdade da vida da aparência (bios). Tais forças, apesar de deslocadas, por serem perigosas e terríveis — ou problemáticas, como afirma Nietzsche —, são necessárias para que a Vida aconteça. Titânicas, atuam na transformação da natureza — física e humana — quase sempre de forma devastadora, corrompendo o tecido da moldura, a individuação, mas afirmando a vida em seu eterno movimento de tecer, a aniquilação.

Esta separação entre natureza física e natureza humana apresenta-se aqui apenas para fins de observação e comparação, pois, na verdade, o que existe é a ausência de fronteiras, o homem como parte da natureza, o homem no qual a natureza se manifesta, a arte na qual se manifesta o homem. Arte, natureza e vida indiferenciadas, o mesmo movimento.

Se a arte imita a vida, o que se imita na arte é esse movimento, essa ação ininterrupta de forças dissonantes, sem individuação, que é a natureza. A arte como metáfora da vida; a natureza como estética, submetida à constante criação. A arte que faz aparecer aquilo que não tem forma, que não tem aparência. A arte que manifesta o processo, o devir.

No conto “O Chantagista”, percebemos como as forças titânicas eclodem produzindo a ação devastadora, desestruturadora da ordem, instauradora do caos. A ordenação sustentada em verdades que tentam garantir a sobrevivência no mundo elaborado como “normal”, com suas leis e valores. Um mundo marcado pela trivialidade, que, entretanto, pode ser abalado a qualquer instante, desde que uma ocorra uma fratura, e uma fenda dê passagem para a liberação do titânico.

1.3. A vida trivial

Fernando e sua noiva vivem tutelados pela sogra e mãe, Dona Zuleica, espécie de “dicionário vivo” que dá sentido às suas vidas. A sogra organiza a vida do casal, dá a sua ordenação, a fim de que vivam em constante harmonia, tenham uma vida consonante. Seus conselhos são a voz da consciência, que ocupa o lugar do pensamento dos noivos. Têm força de lei: Como sua ascendência era grande sobre a filha e sobre o genro (futuro genro), eles não faziam nada sem consulta-la antes”[5].

A harmonia da vida é assegurada pela presença ostensiva da sogra, sua palavra orientadora, seus conselhos. Uma vida sem discussões, sem atritos, sem dissonâncias, sem atitudes sexuais ousadas (beijo de língua) caracteriza o mundo organizado de D. Zuleica oferecido aos filhos, o mundo configurado no casamento “normal”. Fernando, o noivo, submete-se naturalmente à ordem, à ordenação da vida, o mesmo ocorrendo com a noiva. Dona Zuleica é o chão onde constroem a relação matrimonial. Desse modo, do namoro até a consolidação do casamento, segue a vida como um rio em seu curso tranqüilo, inalterado. Curso sem afetação. Dona zuleica fundamenta a existência do casal, a sombra da sogra protege-os de qualquer coisa que possa corromper com a trivialidade.

Entretanto, quais são as garantias para que esse mundo não perca o chão, a concretude, a transparência e a harmonia? Que ordenação pode deter a curso da vida?

1.4. A quebra da trivialidade — ­ A perda do chão

“ ­ Agora posso morrer!”

A fala de Dona Zuleica, após a partida do casal, de táxi, para a lua de mel em hotel na montanha (detalhe configurador da moldura “carioca”, ideal de classe média, que vive o frenesi da metrópole e sonha o idílio nas cidades serranas) é um índice de que a normalidade, o trivial, sofrerá o seu abalo. Um primeiro golpe. O rio tranqüilo e controlado vai ao encontro de águas turbulentas de um mar bravio. Com a morte da senhora, o que fica evidente?

Um e outro não possuíam, de si, nada; sem nenhuma experiência da vida, pareciam não ter nenhum sentimento, nenhuma idéia própria .E quando dona Zuleica, acometida de um edema pulmonar fulminante, entregou a alma ao Criador, eles se entreolharam em pânico[6].

Não possuir nada se si, não ter qualquer experiência. Sem a sogra, sem o mundo das certezas e verdades sobrepostas à consciência, as almas são aparentemente vazias. A consciência de Fernando e da esposa estão por demais soterradas, e a voz de Dona Zuleica, mesmo morta, ainda fala e pensa por eles, repetimos, para a sobrevivência do casal no mundo. Interrogando-se sobre o “e agora?”, apenas o espanto, o pavor de se sentirem abandonados. Tateando, caminhando às cegas (pois não têm experiência da vida), começarão a procurar respostas e sentidos. O “dicionário vivo” passa a ser uma fantasmagoria, o mundo atravessado pelo inusitado, pelo inesperado, pela morte. Sem a presença poderosa da ordenação que dava sentido às coisas, terá o casal de “entrar no mundo” e viver, o que significa pensar, sentir e agir. A morte da sogra produz um abalo, a verdade imutável se mostrou frágil. No chão, a fenda: “— Minha filha, estamos fritos! Não sei o que vai ser de nós!”[7]

A desarmonia está instaurada, o mundo consonante pedido. A frase dita por Fernando, que expressa o terror e o espanto diante do vazio em que se reconhece, aponta para uma depressão, porém, ao mesmo tempo vem das profundezas uma primeira assertiva, uma fala promovendo a ruptura com a individuação construída . Do prolongamento dela, a reflexão meio que inaugural, sua iniciação na experiência cognitiva no mundo, seu comentário “filosófico”:“ — Essa vida é uma boa droga!”[8].

Este primeiro encontro do casal, com uma experiência imprevista, fora do controle de Dona Zuleica, provoca uma brecha tão profunda na trivialidade que os episódios em seqüência (ou conseqüência) serão vistos por uma visão aterradora. Uma visão com os olhos do que estava aterrado, melhor dizendo. Sem a moldura, sem a aparência convencionada (a ordenação tranqüila, consonante e trivial), o que surge de novo será sempre um impacto duro na estrutura que ameaça ruir. Solitários no mundo, a fenda se abre, dando passagem à força titânica de vida.

A FENDA

Fernando, alguns dias após o enterro de Dona Zuleica, quer ir ao estádio de futebol (mais um traço da moldura do trivial “carioca”). Nada mais normal do que ir ao futebol, mas ir significaria uma ruptura na tristeza devido à perda da parente querida. Mas pela brecha o divertimento emerge. A mulher tenta impedir, mas o marido se justifica:

“ _ Mas, filhinha, futebol é a coisa mais inocente do mundo,

te juro que não há mal nenhum!

Pg. 103

A presença da mãe, enquanto voz, ainda ecoa na casa e na consciência da filha: lembra-se dos conselhos de que discussão só traz aborrecimentos. Silencia e consente, acompanhando o marido, do portão, até vê-lo dobrar a esquina. Seus olhos se voltam e de repente percebe o olhar de um vizinho. Estava só, irremediavelmente solitária. Os olhos do vizinho, um antigo ex-namorado, a devorava. Fica vermelha. Entra na casa e convoca a mãe, tenta encontrá-la entre os pertences. Há um vazio que precisa ser preenchido. Quer também fugir daqueles olhos “quase imorais”, que trazem-lhe à lembrança os conselhos da mãe: “não presta para você”. Alfredinho, o ex-pretendente, era ciumento, causava problemas. Seus olhos afetariam a tranqüilidade de uma vida normal? Sua repentina presença, a lembrança, é um presságio de abalo sísmico, uma rachadura na moldura da filha. Ela busca a mãe numa atitude mórbida, que a leva em direção às gavetas. Novamente o inesperado, o duro golpe, as cartas da escondidas de Dona Zuleica. Buscando um refúgio, vai direto ao refúgio da mãe, o que esta soterrou. O mundo submerso: Osvaldo.

A visão de Alfredinho, o ex-namorado que a devorava com os olhos, é a mão que conduz a filha ao mundo “fora da ordem” da mãe. Cartas assinadas não pelo memorável pai, mas por um desconhecido. As revelações são desconcertantes. A jovem esposa, aterrorizada, não acredita no que lê.

Novo golpe em sua aparência já afetada, abre-se agora totalmente a fenda, o mundo de pernas para o ar, as coisas fora do lugar. Duro golpe que destrói a moldura de Dona Zuleica, o discurso de manutenção do mundo ordenado e tranqüilo. A fenda deixa vazar o subterrâneo vivo. Desnorteada, sob a ação do revelado:

“Tudo dançava no seu cérebro e houve um momento em que,

numa tremenda confusão mental, julgou enlouquecer.”

pg. 104

Não percebe a chegada de Fernando, que a vê aborta, entre as cartas espalhadas. A cena causa-lhe espanto. Mergulhado na leitura, o que se revela entra no seu corpo como um tônico revigorante. O genro toma posse do passado da sogra. Quer saber mais, quer saber quem é Osvaldo, o amante de Dona Zuleica. Interroga insistentemente a esposa até concluírem ser ele um amigo distante da família, um homem rico. A esposa em lágrimas, o marido em sorriso quase louco. Pela fenda as correntes da vida são liberadas para mudar as aparências. A face da natureza. A mudança de Fernando:

“Dir-se-ia que a avidez súbita, a idéia fixa do dinheiro o transformava,

inclusive fisicamente. Parecia ter outra cara, outros olhos, outras mãos.”

Pg. 105

“Tive uma idéia genial! Luminosa! Depois te digo!

Pg. 105

Aquele que antes “não tinha nada de si” agora tem uma idéia genial. Transformado, é ele uma conjugação da dissonância (a consonância fora corrompida pelos impactos da vida) e de sua fala surge o Fernando chantagista:

“Seria direito? Correto? Ele, cruel, a emudeceu

com contrapergunta: o que Dona Zuleica fizera era direito?

Era correto? Pg. 105

Colocando as verdades esculpidas por Dona Zuleica, verdades que não eram suas, no terreno sem chão onde as aparências estão corrompidas, destroçadas, conclui Fernando:

“— Ninguém presta! Ninguém é direito!”

Pg. 105

Obcecado pelo dinheiro que pode conseguir chantageando o amante rico da sogra,

“— Vou tirar o pé da lama!”

Fernando não percebe o poder de sua nova assertiva. Ninguém presta, não há quem não esteja isento. Todos estão submetidos à mesma força, todos podem ser atingidos pela corrente, todos estão atravessados pela vida. Dominado, marca o encontro com o empresário.

A ANIQUILAÇÃO

No encontro, o chantagista fica sabendo que o sogro explorava o milionário. Outra revelação que só corrobora com a assertiva anterior. Osvaldo, com compostura e ânimo inalterado, vaticina:

“ — Tome nota: sua mulher o trairá.”

A fala em tom profético do magnata Osvaldo, sem afetação, comprovada na ausência de sinal de exclamação, é o golpe final na moldura de Fernando. Como nova revelação, agora só lhe resta tatear: ninguém presta, afirmara anteriormente, ninguém é direito, nem sua mulher. Toda a aparência está aniquilada.

Animado pelas forças que tomam o seu corpo, desinteressado pelo dinheiro, retorna a casa e estaca no portão. De volta às ruas, passa de bar em bar e se embriaga. Não é mais Fernando, está fora de si, se é que em algum momento chegara a ser o que é. A embriaguez libera o titânico. Apoiando-se nas paredes para andar, fica durante meia hora aos prantos, assistindo ao sono da mulher. Um silêncio. Nada se sabe sobre o que se passa em sua mente. A mulher está dormindo, a mulher, estimulada pela visão do ex-namorado, que a tomou de assalto no portão e a levou diretamente às cartas de amor da mãe, da mãe exemplo de virtude, virtude aparente, aparência. Transfigurado, Fernando ferve uma chaleira d água e a derrama sobre o rosto da mulher. A vizinhança ouve os gritos da transfiguração.

Todo o conjunto de revelações desembocam na loucura. As aparências aniquiladas sob a corrente do inusitado. A duros golpes, tudo desaba. Tudo, menos a vida.

1. CONCLUSÃO

Procuramos apresentar uma leitura do conto ‘O Chantagista”, de Nelson Rodrigues, que faz parte de “A vida como ela é”, sob o ponto de vista de uma poética da aniquilação. A aniquilação que na verdade é a destruição das aparências, tomadas aqui como moldura, representação que veste o ser. Moldura que, mesmo que percebida como verdade, não deixa de ser aparência, sujeita à ação das forças da natureza. Tais forças são a manifestação da vida.

No conto, o conjunto de revelações e o adultério abrem uma fenda na vida trivial de Fernando e sua esposa, que, se por um momento estavam protegidos pela presença moral da sogra e mãe, com a morte desta e a conseqüente descoberta de que “ninguém presta”, inclusive eles mesmos, vêem-se defrontados com a dissonância. Conjugando as forças que os atravessam, são aniquilados, assim como toda a verdade que antes os resguardara. De pé apenas a embriaguez e a loucura.

Abrindo uma fenda no discurso da moral, o conto de Nelson Rodrigues, focalizando a vida, apresenta-nos uma visão do homem em uma dimensão mais profunda do que a simples análise psicológica sobre o caráter. Não apresenta um desvio da conduta ou da norma, mas a irreversibilidade das ações que nutrem a existência humana, que vive para além da norma.

Como comentário final, cabe ressaltar a funcionalidade da linguagem de “O Chantagista” e mesmo dos demais contos de “A vida como ela é”, a expressão coloquial, que, sem cair em um realismo rasteiro, epidérmico, supera os limites entre o literário e o discurso cotidiano, sendo, portanto, simplesmente linguagem, criação humana, produção estética.



[1] NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. p.47, Os Pensadores, Nova Cultural, SP, 1996.

[2] NIETZSCHE,Friedrich. A Arte em “O Nascimento da Tragédia”, in Obras Incompletas, p. 50.

[3] Segundo Carl Kerény, o termo Zoé tem uma ressonância diferente de Bios, o primeiro significando a vida em geral, sem caracterização ulterior, o segundo tocando os contornos, os traços característicos de uma vida específica, as linhas fronteiriças entre um vivente e outro.

[4] Estranhamento, desvio da norma, cf. Formalistas Russos.

[5] RODRIGUES, Nelson . A Vida como ela é — O homem fiel e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

[6] Ibidem, p. 102

[7] Ibidem, p.102

[8] Ibidem, p. 102

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

AVENTURAS, AGRURAS


AVENTURAS, AGRURAS

Há uma solidão que nos percorre. O deserto que somos, seus ventos avassaladores, tempestades, miragens. Ilusões, não deixamos pegadas, no dorso, caminhar em nós é uma aventura desmedida. Sim, não somos o paraíso, armamos armadilhas para os incautos, deixamos brechas para os esperançosos crentes na possibilidade de nos dominar. Mas não. No fundo nossos olhos tentaculares, neles um fogo negro, dissumulado em luz.

Na atmosfera do sonho ela caminha, entre as nebulosas paisagens parece despertar macia em lençóis prismáticos. Havia medo durante algum tempo em seu rosto, mas não agora. Talvez ainda tímida, caminha num ensaio, resoluta, parte em direção ao desejo despontado à frente. Pensa: noutro tempo hesitaria, mas hoje não, me invento inteira, não sou, não fui. Estou embora. Nem rosto nem braços, conforme apareço no instante, bem que quis ser assim, por segundos apenas ,ter nos lábios essa secura pronta a atirar-se na fonte.

Uma expedição penetra o coroção do deserto. Quer dominar os mistérios, vencer as resistências. São homens trazendo sobre os ombros o peso enorme, e a areia fervendo os pés descalços. E ele, o cientista, do alto da sua visão, traz na mão o mapa mal traçado. Um amor indomado é assim, beijo na boca da fera, prazer do limite, desmedida e inconsequência. Apenas o prêmio. Os pés dos serviçais emoldurados de bolhas, ombros esfolados. No centro está abrigado das febres, quem sonhou domar a natureza em seus movimentos de morte e nascimento, e tocar as riquezas adormecidas nos subterrâneos. Talvez morra antes disso. Os corpos da expedição ficarão espalhados ao longo da trilha cujos rastros desaparecem a cada rajada de vento, a marca do medo de quem por ali passará um dia. O arqueólogo sabe de todos os perigos, mas em seus olhos apenas uma vontade visceral: vencer o fogo, vencer a areia, vencer-se.

Ela sente tocarem-lhe os ombros. Volta-se e se vê no espelho. Linda. No sorriso que recebe, a lembrança de que é hora de tomar café, escovar os dentes, passar o vestido, arrumar os cabelos, pegar o carro, enfrentar o trânsito louco da cidade, xingar na avenida, morder-se em silêncio, com aquela música de fundo (mas hoje não), desculpar-se pelo atraso de vinte minutos. Perder-se no labirinto dos ofícios e telefones, correr para o almoço, ouvir a cantada grosseira da mesa em frente, desviar-se, entorpecer-se de assuntos, retornar à mesa, ouvir a lábia do chefe, digitar mil relatórios, tomar um cafezinho, preocupar-se com a baixa de vendas nas regiões periféricas, olhar o relógio e ficar mais meia hora depois do expediente a título de desconto do atraso pela manhã, sentir o bafo do chefe em seu cangote, como a sugar sua última gota de sangue do dia, retornar a casa não antes de prometer aquela cerveja no happy hour onde se reúnem os colegas, sim, depois eu vou, com certeza. Voltar fazendo o caminho sem novidades insuportável pelo barulho, a infernação de buzinas, semáforos que confundem a vista, entrar correndo no chuveiro, nua novamente, e depois, de roupa mínima, tomar o leite desnatado e jogar-se inteiramente no mundo do qual nunca mais despertará, nem que novamente lhe toquem nos ombros e lhe digam que é hora do café.

Bem que se viu o desepero dele, agarrando-se à areia. Secou a água, resta apenas a garganta. As mãos crispadas, contorce-se todo. O ultimo dos serviçais percebeu que os olhos do aventureiro desviavam-se das rotas, o cérebro uma chaleira encandescida. Esboçou o homem um gesto de auxílio, mas seria justo não deixar que o arqueólogo sentisse o gosto da terra tão procurada? E beijasse dela a face terrível e febril, o intenso beijo na amada há tempos viva no seu sonho? Ele, que tanto perseguiu as sensações do deserto, que se enveredou sem trégua, agora, diante da porta aberta, está prestes a sentir o ventre quente e nos seus lábios entregar-se. Seria justo negar esse último instante?

Não, na narrativa do amante não espaço para essa piedade. Deixa então sentir o gosto desse beijo imensamente procurado; sob a pele macerada, sob o corpo alquebrado, a alma radiante, ansiando pelo derradeiro suspiro, dentro dela, do deserto que ousou desafiar. Sem vítimas, nem perda alguma. O seviçal morre, leitor admirado com a cena do amante obstinado, perseguindo imagens selvagens de um sol infinito.

BALANÇO 2010


Foi-se o ano, vai-se o ano. Ganhos e perdas como sempre. Mas uma coisa interessante: a salamandra passeou entre as pedras, visitou os bancos da praça e brincou nas mãos da menina. Vestiu-se de preto em noites coloridas enão chamou nenhuma atenção, conseguiu andar pela multidãos em ser notada, o que é uma glória. A salamandra andava cansada de ser perseguida, de levar pedradas, de servir de alvo para imbecis e desumanos. A salamandra andou pelas ruas, namorou e sed eixou rastros é porque na vida nada fica barato.
Foi-se o ano, vai-se o ano. Fica-se a sensação de que foi bom. No Rio de Janeiro existe um ouro enterrado, a salamandra escondeu o mapa. Seus segredos conseguiram ser resguardados. Outra coisa: não houve tragédias maiores, apenas as esperadas. Muita sorte, sem dúvida. mas Ela merecia.
Agora se prepara para mais um corrida entre as pedras, entre os bancos da praça, em meio aos ratos, em meio aos perigos. Carrega a sua placa de sinalização: homens trabalhando. Ou melhor: salamandra.

domingo, 26 de dezembro de 2010

UM NATAL (1985)

Um Natal

Um par de sapatos brancos brinca na chuva. Dança maníaco-depressiva, fugitiva das alucinações notívagas quase sempre dissimulada num assobio encantador, um sonho de correr pelas ruas desertas dessa noite de natal, observando os farrapos recolhidos ao longo das vitrines, nos becos, em frente às lojas, vidrados nos televisores, esses olhos de fome.

Na Cinelândia, a essa hora, os bares estão fechados, é feriado nacional, acho que no mundo inteiro é assim, ouço falar nas luzes de Paris, e as meninas lá, desfilando a coragem que não tive de deixar-me ir, de me livrar da cangalha que me pesa, essa ambigüidade torturante. Aqui parece que a vida vai parar, a última tv de uma loja acaba de ser desligada, o menino reclama, mas o empregado diz que deve seguir correndo para casa. Acho que o menino não entende nada disso. Ele vai embora e não vejo mais ninguém.

No Amarelinho ensaia os passos Jazzísticos para o show do domingo próximo.

Ajeita os cabelos falsamente compridos. A chuva, para o espanto dos estrelados, continua a cair. De vestidos cor de prata, lamé, viscose, pensamentos passeiam insatisfeitos com uma noite que é única no ano, e tão esperada. O ano inteiro. Pensa: estranho como uma chuva espanta tanto, afinal ninguém está ali para contar uma história da infância, longe dos reflexos do néon, dos palcos faiscantes, cheios de suor e lágrimas, pois é a vida assim mesmo, um vasto corredor de farpas que se intrometem nos pés. O fio d água na testa depois do passo atrevido de sua dança. Caminhar sangrento este nosso. Bela e fera se misturam, um leão a cada. Dia ... ninguém resta para contar uma história, e a noite promete mil aventuras.

Longe dos holofotes, dos canhões de luz, da ribalta, o que fica é o irreal, que se cerca de personagens retirados da memória quase apagada pelo excesso de álcool acumulado nesses poucos longos anos. Há sim, um silêncio cúmplice, solitário cálice que é obrigada a beber. O vinho vermelho, o sangue que vem cantado lá da catedral metropolitana. O natal surge numa noite fria de chuva e ninguém parece estar acordado ou vivo para isso.

Valeria a pena pensar no passado? Talvez nada tenha importância, nada seja urgente, os dragões em sua mente enchem de fogo os seus olhos encharcados de lágrimas (é que a lembrança vem assim de repente, a mente lembrando quartos incendiados, as labaredas tocando suavemente a pele ardente, seus desejos apressados, uma boca apaixonada forma um desenho, um coração, uma entrega sem censuras... o tempo passa ligeiro sobre as cabeças, ela reflete. A hora avança, e talvez a noite lhe reserve um colo ainda, será possível? Um beijo do Rodrigues, quem sabe ele estará lá, na porta do Dulcina, esse doce anjo. O Rodrigues sempre tem algo a dizer, um cigarro a dar, quem sabe um beijo de feliz natal em seu coração puro.

É imensa a solidão que sente vendo os espelhos apagados, os cartazes do Rival em meio ao breu da rua estreita. No Dulcina, o porteiro está lá, e acena um beijo que se perde em entre os grossos pingos que caem. Noite infeliz. Um fio da meia se desprende. Droga de vida!

Os sapatos brancos saltitam inventando felicidade. O Amarelinho é um cemitério de mesas de pernas para o ar. Lembra-se de que todas se reuniriam nas escadarias do Municipal para uma foto. Elas todas, comparsas de misérias, eles todos, sócios de destino. O esgoto exala um cheiro insuportável, terrível vazamento que insistem em não consertar.. Reuniriam-se nas escadarias para seguir em direção à Catedral. Engraçado.. na missa do Galo...mulheres e homens, será esse o amor que tanto procuramos...juntos, uma outra devora... ...estranha... mas onde estão todos nesta noite que promete tanto? ... e as amigas que partiram, juntaram dinheiro como doidas , foram iluminar as ruas de Paris. No couro e no laço, criaram a coragem que não tive. Agora aguenta, e eu só tenho voce, e se eu sofro com isso, não me abalo mais. Eu fiquei só. Ninguém compreende a necessidade de estar junto num dia desses. Eu não posso esperar mais. Ao menos hoje, não. As mercadorias só tem valor no rio de cadáveres. Notícias de mortes, querida, li tantas, um massacre, mas somente em jornal do povo, que gente rica não le... De resto, estão todas expostas em Paris. E lá? Também sentem o mesmo frio que faz aquii?

Em um velho apartamento sujo da Senador Dantas, quatro meninas se aprontam. Experimentam brilhos diferentes, mais sóbrios. O batom ainda é o vermelho, porém isento de fantasias, é a cor da carne, do sangue, do perdão. Cada uma representa o espectro de sua família, imagem fugia de tempos mal vividos, há anos elas não sabem o que é sentar-se à mesa para uma ceia, talvez não tenham coragem de dizer que nunca viram uma fora das revistas de fofoca, das novelas. Acho que se pode viver aqui um pouco do que se vive lá...

Por isso a confraternização, uma foto para as amigas distantes em Paris, solitárias como elas, e depois a missa na catedral da Avenida Chile. Um espetáculo imperdível, do qual participarão sem medo, como senhoras benévolas. Solitárias, sabem que na noite de natal tudo pode ser permitido, desde um sono profundo até a realização do mais improvável desejo.

Neste dia um anjo desce às ruas, aos bares e retira as almas da lama diária recolhendo-as ao véu azul, ao improvável céu dos altares, dos incensos, dos cantos ao som do órgão, do violino, da flauta entoando a velha cantilena do natal.

Talvez encontrar a fonte mágica dos noturnos desvios, magia de um amor à mesa. Ou a morte, num sorriso que disfarça o escárnio de toda uma vida.

Um par de sapatos brancos saltita entre as ruas da Cinelândia. Conforme o prometido, encontrariam-se nas escadarias do Municipal para uma foto. Por que tanta demora? Por que ninguém me socorre nesta noite estúpida? Despoja-se dos sapatos, cujo branco agora está manchado. Bem que o porteiro tentou evitar, cuidado, isso corta mais que faca de peixeiro... só quero cortar o fio da meia... fio de meia se arranca num pronto só, assim, cuidado com o fio, essa faca eu uso como navalha, olha as marcas, faço barba ,ó.. no peito uma perturbação, o beijo que ficou guardado, sem coragem de ir junto com os olhos, que a seguem até sumir na curva. Ela busca os degraus do Teatro Municipal como quem busca o paraíso. Sem sapatos...

O fio escorre da meia para os braços, pára na mão, mistura-se com o jorrar da vida que começa a se esvair, manchando as escadarias. Ainda sobe até o último degrau, um derradeiro giro consegue fazer, para divisar os frisos das janelas cerradas, os bares de portas fechadas, um último olhar para distante Paris. Queria tirar a foto antes de sentir os braços do anjo em sua cintura.

Quatro meninas já prontas descem atrasadas para um encontro nas escadarias do Municipal, uma foto será enviada para as que estão em Paris, a Cidade Luz. Estão insinuantes como uma noite de gala, toda noite promete coisas, diz uma delas, essa noite deve ser a mais triste do ano, a outra fala ajeitando os cabelos já tomados pela chuva. O fio está lá, apesar do gotejar melancólico daquela hora. Ainda assim ninguém a vê, ninguém a percebe, ninguém lhe sente a falta. A boca entretanto ainda sente um salivar seco, sem forças, não se importa em resistir. Entregue à escuridão, os braõs do anjo a sustentam no ar. Absorta em sua ínfima lucidez, seu primeiro sorriso ouve os sinos da catedral.

Quatro meninas atrasadas, correm para não perderem o final do espetáculo que é anunciado pelos sinos da catedral. Não há mais tempo para a foto. As ruas frias e vazias. A noite assume seu papel, a névoa que encobre um corpo do alto das escadarias do Municipal, e a lágrima de um porteiro, que o vela solitário.