segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Fabiano, uma noite


Não sei se de dentro da noite rompe esse clarão vermelho, talvez as pálpebras queimadas do dia, o amarelo intenso da catinga, o verde quase cinza dos juazeiros, a trilha apenas de marcas na areia. E a vida não. Fabiano, você é homem, ainda soa na minha cabeça essa voz, Fabiano, você é cabra, a vida sua é de cabra, é de vilão. E a imagem do filho mirrado, encolhido e magro. E da dor.

Mas que é dor de cabra? Destino só. Andar esse mundo sem lugar, fazer e desfazer a trouxa, armar-se ou não. Lembro do homem que leu, leu, leu... e morreu seco que nem galho.

Essa seca mata, como fome. Ela quer comer, e devora essa gente fraca. Fabiano, você é bicho, bicho forte que luta, aprendi com meu pai, que aprendeu com o pai dele, a seca a gente vence na lida, no laço que a vida amarra, no chão todo rachado eu vejo um rio, eu imagino a água correndo direto para a boca aberta de meus filhos. A seca mata como a fome, matar a fome não é fácil como matar gente, gente é fraca, e a seca é viril, engana a toda hora. O destino.

Esse clarão vermelho só pode ser do fogo que arde dentro da alma, do andar de cima a baixo no dia, e do medo de perder. Hoje aqui, amanhã lá, hoje empregado vaqueiro, amanhã retirante de pé a pé. No cansaço. O patrão quer de mim o que posso dar, o que não posso também... ele tira até o sangue escorrer, não é gente boa não. Seu Tomás da Bolandeira viu o sangue secar, mas não se entregou a gente alguma, coitado, acho que se perdeu nas palavras, nos livros e livros, como pode viver homem nesse mundo só de coisa escrita, sem coisa vivida?

Mas era de alma boa e de respeito, conhecia a dor desse mundo, acho que ele lia, e passava de mão em mão sua bondade de homem justo. Morreu seco, sem dó, essa treva. Eu não. Aprendi a sobreviver nesse chão perigoso. A trouxa sempre pronta a partir, porque a vida é só de passagem.

Mas tento esquecer a imagem do filho. Meu querer era deixar o garoto sequinho lá, na areia que cegava os olhos e a alma junto. Pus nas costas como uma trouxa, retirei a espingarda e entreguei na mão da mulher, essa mulher que olhou em mim e viu um homem que salva o filho das mãos do maligno. Mas eu salvava era a mim mesmo. Fabiano, você não é bicho, Fabiano, você é forte. Eu segurei o menino e o joguei nas costas, meus braços tomavam força estranha, eu quase não sentia mais em mim esse Fabiano que fala dentro, parecia outro, outro de um vale verde, e meus olhos só não choraram porque era preciso seguir rápido, mesmo no lento do passo.

A catinga amarela sumira então de mim, e ficou essa mancha vermelha, grande, que me invade a noite, nessa noite em que tento fechar os olhos e não consigo, quando olho para o lado e vejo essa mulher e seu sorriso seco, sorriso de mulher desencantada. A doida que sonha com cama de dormir. Sou um sábio, sim, e sei que esse sonho é só tormento, que a mulher deve ter com os filhos e dizer a eles para calar a boca e só ouvir — gente — tudo quer saber, e nada não, ela tem que dizer parem de aborrecer, ficar no ofício, que de pequeno se trabalha e se ganha pão. Ah o pão, como se houvesse farinha.

Nem farinha há nessa terra de outro. Porque não era para se enganar, não dormiria assim, pensando ser a terra minha casa, ou dormiria assim, sabendo que amanhã o patrão vinha e gritava, e se da vontade dele brotava o ir-se embora, a gente ia. Mas como a fazenda, acho que a vida vai. Sinhá Vitória vai acordar com outra cara, e Baleia vai correr comigo em campo atrás de gado, pois agora sou vaqueiro.

A fazendo é o mundo.

O mundo pode secar, eu sei, olho para os troços minguados no chão sabendo que a qualquer momento haverá um fim. Como essa noite, diferente da outra, desprotegida no meio da catinga, de fome e sede. Olho para essa fazenda morta ainda e ela começa a fechar os meus olhos, de sonho eu vejo algo além desse vermelho queimaço do dia, olho e vejo uma terra cheia. Uma terra morta ainda, mas que vai correr vida em cada passo, e haverá chuva, e as sementes brotarão, vaqueiro daquela estância para nascer. E um tempo em que não será a alegria um divertir-se com ossos de preá.

Baleia se balança como se ainda estivesse atrás da novilha raposa... ou então dança no tilitar do chocalho de ossos. Baleia sonha a sua caçada, e a volta com o prêmio entre os dentes. Na verdade, seu estômago a enfraquece, sim, ela está é tremendo de fome, a fome nos traz miragens, e se ela sonha com a caça, se ela traz nos dentes a sua presa, ela ao mesmo tempo já é uma presa da morte, que cedo ou tarde vem. Dela ninguém escapa, não há homem no mundo. O pequenino escapou porque Deus... me fez homem na hora horinha, e depois havia o papagaio, mudo, que serviu de comida quando não mais havia. Esse Deus levou, se é que Deus é para bicho também. Mas sim, eu sou cabra, e cabra não é gente, e cabra é filho de Deus, então Baleia também. Nas veredas percorridas o rastro meu e de antepassados, e deles, dos bichos, a história é sempre a mesma, uma catinga uma vez na vida verde, e o resto o amarelo. Da morte ninguém escapa, vou-me indo.

E Fabiano, homem ainda.

Renato França

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