quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

SIMULACROS: UMA RADICALIZAÇÃO DA FICCIONALIDADE


SIMULACROS: UMA RADICALIZAÇÃO DA FICCIONALIDADE

Renato França

A ficção brasileira, ao final da década de setenta, encontra-se diante de um impasse: para onde ir? Como superar as fórmulas já esgotadass do “realismo verdade”, documental e de base naturalista, tradicional em nossa prosa, presentes ainda em romances “modernos” como os jornalísticos ou mesmo livrar-se do peso do alegórico, do ‘isso quer dizer aquilo’, comum e até necessário em período nebuloso, marcado pela censura imposta pela ditadura militar?

Como, ao mesmo tempo, desviar-se dos excessos de ‘engajamento’, resultado do patrulhamento ideológico austero da “brigada crítica” da esquerda brasileira? Engajamento, que é um dos traços que mais bem definem essa literatura brasileira nascida sob o signo da missão, da atualização, da redenção?

Falamos aqui dos excessos que limitam o olhar sobre estético. E sobre a literatura.

Mas e o caminho de superação do impasse? A própria literatura daria a resposta; e o que se percebe, nos anos finais da década de setenta e princípio dos anos oitenta, por essa época já respirando a anistia e a abertura democrática, é o mergulho na experiência criadora, uma radicalização da ficcionalidade, tomada como consciência (des)construtora do real. Melhor dizendo, a consciência do real também como aparência, como imagem, como material manipulável nas mãos de um “artista”, de alguém que lhe depreende os materiais, desloca-os, aloca-os, de acordo com sua vontade ou interesse. Um mundo enquanto estética, enquanto forma, uma realidade manipulável, construída, repetindo, ou refazendo o percurso da ficção. Uma consciência da experiêncioa humana sempre mediada pela linguagem.

Tal postura da ficcionalidade propõe a renúncia ao projeto estético-ideológico de produzir a literatura-verdade. Com um olhar mais desconfiado, afiado em corrosiva ironia, por vezes perversa porque aniquiladora de ideais, sem lugar para a utopia própria da produção artística da vanguarda, que se estende do primeiro modernismo até a tropicália, herda desta sua propensão ao experimentalismo, à pesquisa estética, ao trabalho crítico com o significante, no caso da narrativa, com a forma tradicional do romance. Desarmado do aparelho crítico engajado, portador de “verdades”, armou-se o ficcionista de um olhar sobre seu próprio trabalho de inventor, e sua perspectiva passa a apontar para a própria ficcionalidade, para o próprio texto, como se não houvesse realidade outra que não a estética, e desvendando a realidade enquanto ficção.

Dobrando-se sobre o ficcional como ato crítico, o que se apresenta, ou se tematiza, é a ficcionalidade da vida, atravessada pelas contradições, dramatizações e pelo aniquilamento do indivíduo, transformado em mero personagem que só se manifesta entre paredes que delimitam o seu universo, que controlam os seus passos. Paredes que são a construção de um outro, manipulador poderoso — limites fixados por um criador, autor ou narrador — limites que não ultrapassam a teia narrativa que enreda a vida. O ato crítico de narrar denuncia então o quanto de ficcional há no que se considera mundo real.

Esse o foco de uma literatura a qual tenta responder a questão sobre a possibilidade de se encontrar caminhos que não sejam o documental e o alegórico já tão percorridos em nossa prosa.

Escapar ao excesso de documental e de alegórico, lançar mão de silêncios e elipses, essa é tendência contemporânea de nossa narrativa. Metanarrativa, devora a si mesma como a serpente que morde a própria cauda, imagem cara a Paul Valery para caracterizar a sua poética e a da modernidade — olhar a realidade como obra ficcional através dos olhos da ficção, ato crítico que desdobra aos olhos do leitor um mundo de representações.

Uma narrativa da pós-modernidade? Uma narrativa do contemporâneo?

Tais considerações sobre a ficção do final dos anos setenta e início de oitenta orientam a leitura que fazemos de “Simulacros”e “Breve História do Espírito”, romances de Sérgio Sant’Anna, o primeiro publicado em 1978, e que dá seqüência a uma produção instigante, desde “Cartas de Manfredo Rangel a respeito de Kramer”, livro de contos, e “Confissões de Ralfo”, romance autobiográfico imaginário; o segundo de 1991,publica do pela Companhia das Letras, obras nas quais emerge toda a questão do fazer literário, da construção do texto como uma reflexão sobre a vida, da escrita enquanto ato crítico, escrita irônica que dialoga com a tradição de nossa prosa.

Que são simulacros?

Simulações de realidade, manipulação, jogo de construções possíveis ou não em que personagens experimentam a vida com o que ela tem de absurdo, contraditório. O verbo experimentar aqui atua como elemento estruturador da narrativa de “Simulacros”, pois, ao estabelecer um contato com o romance experimental da tradição naturalista, desvia-se deste em sua intenção de não fotografar a verossimilhança do real-verdade. Próximo da paródia, corrosivo em sua ironia, o laboratório aqui faz experimentos com realidade vista como peças de um mosaico, que podem ser alteradas de acordo com a vontade do criador. Neste sentido, o romance de Sérgio Sant’Anna singulariza-se pelo jogo que promove com essas peças, relativizando o que é real e o que é aparência, para no final suprimir a possibilidade de existência da primeira, retirando as fronteiras entre uma e outra — deixando-se ver apenas a teatralidade e a manipulação:

“Na crônica daquela casa não se escreviam pessoas, profissöes, mas tipos, personagens, protótipos esteriotipados a simularem papéis, dirigidos por um espírito malfazejo, inventor maluco, gênio do mal”. (p. 82)

Personagens são tipos. Não têm nome e estão submetidos a um contrato junto ao cientista, inventor maluco e espírito malfazejo; são obrigados a viver sob a aparência: JP, jovem promissor, Vedetinha, Prima Dona e VC, velho canastrão. O dr. PhD, mestre da manipulação, cria situações a fim de observar o comportamento humano. São situações absurdas, tais como uma aventura no parque municipal durante a noite, encenando “Chapeuzinho Vermelho”, ou então um passeio pela cidade com as personagens travestidas, ficando ele, o criador, o cientista, na antecena, observador, do alto de sua autoridade outorgada pela “compra” das individualidades. Quaisquer ações ocorrem sob a sua orientação e ordem, sendo, portanto, vedada a possibilidade de manifestação de desejos, ou melhor, esses se manifestados só podem ser atendidos de acordo com a vontade do cientista. Vontade soberana.

“Ele parecia pesquisar em todos os tipos de livros: teatro, psicologia, ciências sociais, religião e até literatura”. (p.22)

As experiências existenciais do grupo são respaldadas por pesquisas comportamentais, realizadas em várias disciplinas do conhecimento humano. Da pesquisa social resulta o grupo, que constitui uma família, nos moldes tradicionais: o velho pai, a mãe; a filha e o noivo pretendente. O noivo, Jovem Promissor, assume o papel de narrador, um narrador que, em tensão com o seu criador, talvez o sujeito autor, luta por sua individuação, promovendo, ao longo da narrativa, uma rebelião contra essa mão poderosa de quem manipula, o Dr. Phd, e que dará o caráter inusitado ao final do romance, quando, após a sua morte, ressurge no sorriso de um simulacro de filho, do filho do casal JP e Vedetinha, como uma permanência inexorável do poder, que apenas muda de aparência. O narrador é um revoltado contra o aprisionamento da realidade ficcional, quer ser criador também. Mas é bom lembrar que a condição de narrador é dada pelo cientista, que considera o jovem promissor um “artífice manipulado por um ser supremo”. Difícil, então, para as personagens, livrarem-se das artimanhas desse ser supremo. Difícil escapar das regras do mundo ficcionalizado, no qual

“(...) o seu criador já admite desde logo que possui direitos sobre seus personagens, sobre mentira e verdade” (p.60)

Interessante que a condição de narrador de Jovem Promissor, apelido dado aos jovens escritores que prometem, não lhe permite a direitos, nem sobre si mesmo, nem sobre as outras personagens. Sua autoridade de narrador é desconstruída pela inserção na realidade manipulada pelo ficionista, que é quem lança os dados do destino. O narrador insiste em encontrar sua autonomia, mas sofre a crítica do criador:

“ E aqui aproveito para tecer uma leve crítica ao trabalho do Jovem Promissor. Uma certa tendência para a divagação, a explicação, quando todos sabemos que a boa técnica de um relato deixa ao leitor as interpretações” (p.56)

Abstraindo-se da trama envolvente de Simulacros, do fio narrativo que conduz de forma muito clara e estruturada a um clímax surpreendente, e que merece um estudo à parte, fica evidente que interessa aqui o jogo ficcional, no qual a realidade é montada e desmontada. Um jogo com a linguagem e com a representação: a possibilidade de construção de uma realidade, no plano da ficção, projeta-se no plano da narrativa como condutora das ações, ou seja, a construção da realidade movimenta as peças de forma lúdica, sendo a narrativa tecida pelo artífice, que é narrador, personagem e mesmo o outro do autor — Dr.PhD — o outro que atua como jogador, voz de fora/ dentro da narrativa. Uma voz que orienta o narrador.

A narrativa aponta para a construção do ficcional: cenários, situações existenciais, experiências conflitantes, índices comuns a qualquer narrativa tradicional, em “Simulacros” ganham o status de personagem tematizado, atuando junto as outras personagens que, como representação ou aparência, sofrem com sua despersonificação:

“ Ah, quer dizer que somos cobaias, heim?” (p.96)

Narrador e personagens têm a consciência de que são meras peças no jogo de xadrez do criador, por isso a necessidade existencial de livrarem-se dessa mão dominadora. Como se percebe pelo título, “Simulacros” pretende, através dos conflitos e tensões existentes entre os elementos da narrativa ficcional, levar a limites extremos a verossimilhança realista a ponto de ultrapassá-la, deixando-se à vista apenas o mundo de aparências, a ficcionalidade. Monta um painel em que são problematizados o ato de criação e representação no ficcional. A opção é a radicalização da ficcionalidade, sem deixar de expor as brechas por onde vazam inserções sobre o tecido social brasileiro, desmascarando a sociedade que se movimenta no véu das aparências, que teatraliza a vida, absorvida que está pelos papéis e scripts escritos ou ditados pelas mãos de poderosos manipuladores. Um mundo de simulacros — um mundo de pura representação.

Longe de se concentrar em esteticismo vazio, em experimentalismo puramente significante, traça o encontro da narrativa tradicional com a pesquisa estética mais radical, sem se filiar a nenhuma das duas formas de narrar. Há, portanto, um aproveitamento das tradições realista e modernista, esta mesmo em sua vertente mais radical, a de um “Serafim Ponte Grande”, de Oswald de Andrade, por exemplo; aquela pela adoção, mesmo que sob a forma de paródia, do romance experimental:

“(...) Ao mesmo tempo em que se narrariam, num estilo litero-jornalístico, fatos verdadeiros, estes fatos seriam provocados por uma intenção imaginária-ficcional e de caráter eminentemente científico-experimental. Tanto é que a encarregar-se da escrita do livro fora chamado um dos pr’prios voluntários de toda a experiência e que seria experimentado nesta atividade mesma: escrever. O que tornaria este livro experimental na acepção mais exata da palavra. Pois experimentavam-se não só os experimentos, como também as personagens e até o autor. Este considerado aqui não como um livre criador, mas como artífice manipulado por uma entidade ou ser supremo, uma espécie de deus (...) que apenas sintonizava seu auxiliar em determinados canais de captação e compreensão”. (p. 95)

Estabelece assim o diálogo, avançando para um caminho cujo percurso conduz a uma reflexão sobre a literatura como expressão da vida, e não como reflexo dela. Olha para a “realidade” sem a intenção de conduzir bandeiras. E se a desmascara, não é pelo viés ideológico comprometido com o “dizer as verdades”; se mostra as contradições sociais, mostra-as como as contradições da própria vida, que se esteticiza cada vez mais no universo da (pós) modernidade.

Cabe dizer, aqui, para fins de conclusão, que essa atitude crítica de uma narrativa que se debruça sobre si mesma a fim de, através da meta-narrativa e da ficcionalidade buscar um sentido ao que denominamos real, é um traço pertinente que nos ajuda a perceber a ficção produzida no pós-ditadura. Mais perceptível e fundamental, entretanto, é o constante diálogo estabelecido do contemporâneo com a tradição, com as formas tradicionais da narrativa, mesmo as de tom confessional e memorialista. Sem as características de um movimento organizado, de um “ismo” a mais na história da literatura brasileira, o que caracteriza o contemporâneo é a sua fluidez, a sua consciência de passagem, ou de margem, de terceira margem. Consciência de ser ficção.


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4 comentários:

  1. Excelente sua crítica, Renato. Sem dúvida, uma contribuição efetiva para que se elucidem facetas deste momento tão obscuro pelo qual passou a prosa de ficção nacional.

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    1. Obrigado amigo... acho a prosa desse período fascinante, um momento de parada estratégica e de retomada de caminhos.. agora precisamos fazer a revisão de tudo isso, como essa prosa se desenvolveu nos anos 80,90 e 00.. pois são trinta anos de ficcionalidade...

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    2. Costumo dizer aos alunos que a prosa de Sergio Santana,Antonio Torres, Inacio de Loyola Brandão, J. Gilbeto Noll et alii ainda não foi devidamente digerida, tanto pela crítica e menos ainda pelo público. Adentramos os 80-90-00 no limbo da indefinição...Paulo Coelho (leia-se: o mercado), que não é bobo, aproveitou-se dos silêncios da escrita etc etc etc...Sim, meu amigo: ainda é hora de revisão!!!

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  2. vamos organizar esse projeto? Vamos escrever sobre isso.

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