domingo, 9 de janeiro de 2011

FÁBULA DE PAISAGEM, PASSADO EM REVISTA



Encontro-me fechado. Nas mãos as coisas de sempre, inesquecíveis. O passado desconcertante me penetra instantâneo ao virar a página e dar de cara com a nudez de uma morena. Intriga-me esse fingir de todos os dias, o pensar que me dá prazer a fantasia das fotos, imagens que se intrometem em meu cérebro para que no sonho delas faça uso. Como na tv. E esse corpo moreno, como o que já foi meu, perdido no tempo,
Essas revistas americanas são sempre iguais, por que então o fato desta de nome PUSSY me trazer às portas de uma viagem sempre adiada? Por que Alice retorna após a construção do enorme abismo? Uma forte dor. Uma foto.

Os olhos mergulhavam afoitos na vereda, paralisados. Cores lisas e brilhantes, o que viam. A única diferença, a fechadura obscura, o orifício onde passava os melhores minutos da vida. Sempre admirando minúcias... que trauma este o de admirar as partes mínimas, os adornos secretos. O mal dos santos.

Alice eu via como na minha infância. Do lado de fora. Fingia-se, escondia-se, abria-se, não se incomodava de me deixar como uma pedra em seu caminho. Topadas diárias, doeria um futuro. O meu estado trêmulo... às vezes eu fazia abrirem-se os lábios enormes, que esboçam um sorriso angelical, de boba, o mesmo da virgem dos domingos. Eu cruel, astuto menino, ia corredor afora, afogados os sentidos de tão duros, esse sentir a minha culpa, recitando a oração de São Francisco. E logo era convidado a ensaiar a vocação.

Quantas vezes, surpreendido no banheiro, ela me olhando de cima a baixo ao trazer a toalha. Morria de vergonha. Agachava-se. Suas pernas refletiam o lustre vaporoso, quase vela confundida. A fumaça em mente. No silêncio deixava-me levar pelo vaivém de seus braços. Esquecia-me do remoído.

Quantas vezes era surpreendido e me deixava ver sem reação alguma. Que fazer nessas horas em que se desfaz um mistério? A partir de então, passei a seguir dia e noite cada andar, cada desvio de olho, um suor na testa, uma gota. E passei dias e noites fugindo da própria sombra. Medo? Esquivar-me? Mascarava Alice, buscava a surpresa. Tantas portas cerradas, escuras, cegas, mudas, desatinos. Meu desejo, o de ver Alice como ela me vira.

Isso, ver Alice, não me dava trégua. Obsessivamente um dia descobri o lençol que nos envolvia. Uma noite, uma luz quase imperceptível, que custo crer... na escuridão do quarto mais afastado, de fundos, o quarto de Alice, os meus passos vacilando, tropeçaram os olhos magnetizados. Da porta entreaberta consegui perceber a respiração esquisita, perdida no ar, como um vaga-lume atraente, vagando o brilho, pintado nas unhas, esmalte vermelho, insinuado. Formas invisíveis a olho nu, somente desarmado, educado. Desprendi-me das correntes, a porta entreaberta, deixei cair o pano e com a cara me mostrei. E olhos. Estático, ali a sua frente como antes.
Tentei ver em seu rosto o meu endurecido. Nada parecia. Debrucei-me ao pé da cama, improvisando cada gesto, meu andar. De surpresa, rouba-me o braço num forte impulso, de cara o desejo. Atordoado, só me vejo. No meu quarto, debaixo da coberta, cheio de calafrios. A febre se ocupa.

Passo dias sem dizer palavra, como barris de água fria a vocação me cobrava os versos de domingo. Mas ela persistia em mim invadindo os meus domínios. A todo instante ouvia os sons exalados do sono, tão loucos gemidos. Como somente eu os ouvia? Girava de um lado para outro. Dois fortes braços me dividiam.

Não adormecia sem antes experimentar um novo delírio.
Novamente me encontrava ao pé da cama, vendo seu corpo estirado num mar convulso. Não conseguia conter em mim os gemidos esquisitos cada vez mais altos. Seus olhos agora espelhavam os meus, eu via a cor vermelha atravessando as paredes; encontrou-me rápida, despiu-me, beijou cada parte que pôde alcançar. Meus ouvidos tomados de estranha surdez, dolorosa. Separou-se de mim, num estanque. Vi-me à frente do festival íntimo, em grossos fios, fiando-me o mundo, ali desvendado a cada corte nos lábios. O sangue escorria, eu escorria, no tempo satisfeito com o medo do estranho, do indefinido, do que não entendia ainda, até um fim rápido, em minha cama.

Desmaiando.
Imaginei revivê-la todos os dias. Não poderia mais me conter, tanta coisa. Uma segunda noite, porém, o fio da realidade despertou o pesadelo, tudo em ruína, eu nos braços de Alice, o ruído da porta que desconfiava. Da janela o adeus, a promessa de que nada ser esquecido. Eu me prometia.

Continua a revista em minhas mãos e as lembranças vindas em cada cena. De Alice nada sei ou ouvi dizer. Como de mim, vida descoberta dos mistérios.

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