sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Retorno - uma Odisséia às avessas...


“O herói, depois de anos ausente, retorna ao lar. Quase esquecido, na vida nada tem mais valor que as vitórias, na terra e no mar. Monstros, enfrentou os piores, de arte plena revestiu a vida, de sonho tornou-se matéria de poesia. A imagem reluzente, agora distante da luta, retorna a casa. Uma criança pulsa dentro da pureza do coração, o abandono necessário, mas de volta, velho alquebrado. Na alma o sorriso. Um menino.

O homem se ausentaria apenas por uns dias. Na mala, somente as coisas de uso pessoal, de sua higiene, e pouca roupa, a programação sem novidades, sem tempo. Restrito aos auditórios, talvez um terno simples e três camisas, cuecas, e mais nada além do cotidiano. Longe de casa, persistiriam os mesmos hábitos, a sua rotina jamais se alteraria.

Como se dentro dele o gelo fosse eterno, uma frieza estúpida que torna a vida um arrastamento ininterrupto até o final de um precipício. Era assim que se via, em uma nau em meio ao mar infinito, até que de repente se abriria a grande garganta, que o engoliria para sempre. Como eram engenhosos os antigos quando imaginavam o fim do oceano, pensava, e mais aqueles monstros. Era um mistério da vida conviver o tempo inteiro com o medo, o surgimento repentino de um ser imenso, brotando do fundo das águas. Águas que guardavam outros perigos, tubarões e baleias assassinas.

A felicidade é não perturbar a vida, deixá-la correr sem rachaduras, sem a mão que dirige o destino, gosto de me arrumar para estar pronto. E só. Minhas malas levam a minha vida, tão simples, a casca do ovo, sempre igual, um ovo é igual a outro ovo, muda o tamanho sim, mas no fundo dará na mesma galinha. Adoro isso.

“Agora volta para casa. Seu sorriso canta apenas o que viveu, o que era preciso, não recalcitrou as ofertas de bandeja do destino. Ameaçou os deuses, o sangue em sua túnica rasgada, maltrapilha, sinaliza o mundo selvagem que foi o percurso. Mas com ele as palavras. Livros abrem portas, imagens concretas dão humanidade a sonhos. A vida, jamais se cansou de buscar em cada gesto o cercado de inocência, não recusou os movimentos incautos e inseguros, a dose de coragem sempre alimentada pela criança que imitava de dentro.”

O café no hotel. Nada diferente. O pão francês, o leite quente. Foi o que pediu. E mais uma fatia de queijo. Para que serve o pensamento? Valeu ter pensado tanto essa gente que escreve livros? Odeio filosofia, odeio qualquer coisa longe de um dicionário, ou do caderno de notícias, que são iguais todos os dias, morre um, cai um prédio, outro atentado, tudo o mesmo. Este é o grande acontecimento, imitar o dia, hoje um sol tranqüilo, amanhã quem sabe uma chuva, e no final o abismo, sem mais. Tomar café no hotel como se fosse na própria casa, ausente apenas a mulher, mas esse silêncio não é o mesmo dela?

Esse silêncio que só permite uma música em volume baixo, quase impessoal de tão discreto, acanhado. Fizemos assim, uma vida perfeita, a mulher acorda e sabe que o homem a protege, toma o café e vai para a luta diária, ela tecerá os fios da espera e de noite aquecerá o frio com o corpo, dormirá feliz.

Ainda sinto o gosto do beijo quente, mas chega disso que não é hora, você sabe que tem hora para tudo. O café no hotel sem o beijo. Esse beijo diário, já sem a força dos primeiros anos, mas acho que sempre foi assim, sem sentir falta alguma, ou vontade nenhuma.

Ele quer que o hoje seja como ontem, e isso me enche de raiva, o peito oprimido, minha respiração em respiração em fogo. Do outro lado, a quilômetros de distância, ainda estou na cama, não como de costume, eu quero fazer diferente, ele é que tem cara de rotina. Vibro com a idéia de não ter que levantar e preparar um café com leite, o humilde pão francês. Depois ouvir a pergunta: ainda tem queijo? Vida irritante. Hoje será diferente, naquele livro está a vida dos grandes artistas e dos filósofos. E imaginá-lo lá, no meio de conferências, vestido no mesmo terno velho usado no casamento, olhando indiferente para o tempo, como uma praga, como se navegasse um mar tranqüilo, até que seja tragado pela eternidade... como eu gostaria que fosse para sempre. Por que esse monstro do mar não aparece logo e o carrega para as profundezas, eu aqui morro afogada a cada dia, minha voz perdida nas águas, desse mar sem ondas, desse mar de torturante calmaria, onde estão os peixes? Onde está o perigo? Talvez na janela, ou no mercado... no mercado vejo a minha segurança, ou a dele, e acabo dando gargalhadas que ninguém entende, entender essa gargalhada tão vulgar, sim, vulgar como me sinto, se ele imaginasse, estou aqui ainda na cama, pensando em como me desfazer da presença dele aqui impregnada, nas paredes, nas xícaras, hoje não tem café, nem pão. Como gostaria de vê-lo cair no abismo, nas gargantas profundas do oceano; como é estranho desejar a morte.

Logo ela, uma mulher educada para servir todos os dias de bandeja o marido. O monstro dentro de si crescendo, a mulher livre naquela manhã sufocando, a mulher feliz por estar livre da presença ininterrupta de seu algoz, sozinha. Imagina então que, se pudesse estar lá, no hotel tentaria um acontecimento, deixar que um sino tocasse, como nas histórias em que um casal, vivendo anos de sua rotina, desgastado, após o conselho de um terapeuta, viaja para quem sabe. O casal resolve ir para Veneza, gastam o resto de dinheiro das suas vidas, vendem um automóvel e embarcam em gôndolas, na fantasia dos beijos que vão acontecendo um a um... mas a morte fulminante do homem, após um jantar à luz de velas, na cama do amor, transforma esse santo momento em um coração estraçalhado, um coração que nunca suportou ser feliz

Sei que o homem está lá, tomando o seu café com leite, comendo o seu pão francês e depois a terrível fatia de queijo. Por que sempre esquecê-la na hora de comer o ridículo pão, e me fazer ir até a geladeira, pegar um queijo que nunca acaba? Sim, porque nunca se esquece de comprar o queijo, assim como o pão, o leite o café. Ele nunca se esquece de nada. E depois o beijo. Odeia beijá-lo com aquela boca de queijo passado. Melhor seria morrer com o coração explodido que vê-lo todos os dias repetindo um gesto, com essa habilidade cirúrgica, o corte em minha vida calculada para ser perfeita.

O monstro dentro de si crescendo. Ela vê os tentáculos surgirem de seus cabelos alvoroçados, hoje não precisa de escova. Ela sai, encherá a casa de pretendentes, não será a mulher tecendo o tapete, não se guardará. Ele, o homem, estará do outro lado, em outro hemisfério, realizando o seu cotidiano, ele tem todo o tempo do mundo, ele não tem pressa, ele sabe que amanhã é apenas uma conseqüência, nada mais, ele sabe que retornará a casa e deixará a mala no chão, um café socorrerá o frio de sua boca e, aquecida, poderá oferecer o beijo das manhãs, o beijo da proteção, e ela, linda, se sentirá a mais feliz das esposas.

Ela não tem tempo, ela precisa tomar a primeira gôndola antes que ele retorne, ela quer ser engolida por um ser das profundezas, ela percebe que a grande garganta se oferece dentro da alma, os perigos, a atmosfera turbulenta de um mar agora completamente enfurecido, trêmulo, e precisa se agarrar antes que o tempo escorra inteiro e volte aquela louca calmaria.

Ao chegar ao palácio, o herói encontra os seus antigos pertences tomados por outra mão, o seu cão, o seu filho, e a sua mulher eram parte de outro homem. Ela, uma rainha, após vinte anos de ausência, após tecer infinitamente um tapete em cuja estampa só figuravam tristeza e solidão, deu um grito que ecoou em toda região, e mil homens adentraram o salão nobre, vergaram seus arcos, dirigiram suas flechas em direção ao desejo. Sempre há um vencedor.

O herói bem que tentou repetir seus feitos ao ver a cena do palácio tomado, evocou o passado e os deuses que sempre o protegeram. Mas não. Pois não era mais o homem, era de novo o menino. Frágil, partiu. A vida aberta novamente, a ferida uma cicatriz

Renato França

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