sábado, 8 de janeiro de 2011

DA JANELA (o que não mais se vê...)


É só levantar da cama e ir ao banheiro. Um exercício duro, um passo além das forças. Da janela, os pingos da chuva alagando a cidade, a cidade que parece um copo de leite derramado sobre a toalha branca do café da manhã.

Tempos remotos, levantar e saber que na mesa aguarda a mulher, os filhos, o labirinto em que se perdeu. Tempos remotos, em que o automóvel na garagem dormia tranqüilamente as suas noites.

No labirinto há tantos caminhos e também nenhum. Levantar da cama exige uma força que na verdade está longe de existir, nem que se queira.

Não existe querer. Os olhos se apagam no cinza da chuva, a velha luz de um fogo que ardia imenso nas entranhas. Sonho de anjo, dizia alguém, sonho de vingança em incerto futuro, sabia.

Um sonho antigo na memória vem com o gosto que falta, como é estranha essa ausência de tempero nas coisas, um branco na boca , o nada para dizer, embora lúcida. A boca adivinhava os pratos e os sabores. Alvos dentes sobressaíam da boca à margem, o anjo por detrás da porta ouvindo as confidências, menino, sorrateiros passos, coberta cabeça, o pai, fugidia luz, com o pano de prato, imitando o monstro da lagoa negra, apenas para assustar os maus presságios. A boca se abria.

O anjo menino eterno do peito, alijado dos sonhos. Da janela, sonhava sim, e a torre de babel entupia os ouvidos.

As línguas incomunicáveis no café da manhã , essa dor de passado vivo, gritando dentro uma criança impedida, de fora somente os escândalos, reclamando que não dá mais tempo, a pressa, é preciso ir logo, está na hora.

Os desenhos mal rascunhados, por fazer. O desenho do herói apenas vagas linhas. O monstro dever de cada dia , inscrevendo-se na história. Esse novelo, escrita diária, cobre de vez o tempo que se expande serpentinamente, até tocar-se, calda e cabeça, início e fim. Tudo de novo.

Crescido, olha-se. Em torno, os fantasmas. E as cenas repassadas a limpo, menos os desenhos, projetados. Assim conclui, sejam elas o quadro emoldurado do fracasso, da dor, da desesperança, do atrito da alma nos desvãos dos caminhos, mil portas convergindo a um mesmo ponto, ao mesmo lugar. De volta à mesa.

A voz do filho ressoa. As xícaras tilintam a canção matinal, quente e úmida, a chuva irremediável, as mãos cortando o pão, a faca e seus dentes tão afiados, a incandescente língua se derrama sobre a mesa, palavras mancham a aurora. Quantos dias ainda encenariam essa manhã? O labirinto abre os braços, traga o corpo inteiramente num abraço sufocante. Grita a voz no arremedo de memória: ontem parecia arder a vida aqui, rastros deixam perceber que neste lugar tramou-se a felicidade. Veja-se no quadro da parede o sorriso, um cão deslizando no peito da criança.

Mas só restos? E as sobras? Juntam-se os farelos sobre a mesa e o leite derramado que seca, os resíduos de uma batalha campal, sem palavras, bocas ocupadas na pressa de mastigar e de beber o líquido fervente.

Pois não havia tempo para limpar nada, apenas o de correr para o automóvel. Gritando lá fora, a hora de ir para a escola, para o trabalho, a chuva da janela é a mesma, a cidade e seu curso.

É só levantar da cama e ir ao banheiro, cheio de imundícies, sujo de meses, de uso, e a urina que se derrama todos os dias no pé do vaso sanitário, os pingos sobre o assento amarelado. Sem luz, o cinza cobre cada palmo percorrido pelo olhar. Não, agora se perdeu, agora já se foi.

Você já se olhou no espelho? É só levantar os olhos e desejar —no armário os ternos se amontoam — o telefone parou de tocar, acho que a casa sem luz. O sorriso no quadro da parede ainda me chama, eu sei que é só me levantar, a chuva não impede que eu caminhe até a chave e faça girar a vida novamente.

Girar a chave, a chuva torrencial não permite que o automóvel saia. Gerar a vida, a cidade é um alagado imenso, o céu desabou sobre as cabeças. Sem luz, os quadros da parede se descolam, as falas mudas que contam o dia-a-dia da história — quero água, apaga a luz, desliga a televisão, não é hora de jogar— é só levantar e deixar que a urina vaze. A casa fincada, as águas levam restos de outros, para sempre, olha pela janela, a cidade se decompondo, somente a casa resiste, essa memória implacável que diz não, não se vai assim. Do anjo agora a fúria vingadora: é preciso ter forças para a vida vazar da casa coberta de passado, e misturar-se com os restos que a chuva levará para longe.

Renato França

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