domingo, 23 de janeiro de 2011

Manhã de domingo



Manhã de domingo. Ele ajusta os cabelos com o creme de todos os dias, estica a meia, amarra os cadarços do tênis azul. A semana inteira desejando essa hora, de soltar o corpo nas alamedas vazias, sem o ensurdecedor dos automóveis, sem as fisionomias distorcidas da massa, diariamente perdida e ensimesmada. Sem as loucuras de páginas desperdiçadas nas bancas, os tipos escuros das manchetes ,os sinais da agonia de cada dia, de cada homem.

Manhã de Domingo, sem mãos pedintes no sinal ou na fila da padaria, o pão fumegante avilta olhares de fome. Sem a preocupação de dizer "rápido, que não tenho tempo”. Tempo que se esgota no sinal vermelho de conjecturas, “que falei? que dizer’?

Do espelho do banheiro, no momento de dar um último retoque na mexa teimosa a desprender-se do todo, vê os reflexos do sol nascente desta linda manhã de domingo, parece acordar agora, sem as máculas semanais dos gritos abafados pela crueza, traduzida violência, sim, eu ontem vi pelo retrovisor o corpo de um homem estirado na rua, parecia um porco abatido, branco e inerte, senti vontade de parar, balançar aquela carcaça, mas, parece, os urubus cercaram-no para lhe devorar as vísceras. Tudo já tão distante deste domingo. Hoje espera caminhar no silêncio, na atmosfera da festa íntima de seus segredos, remoídos enquanto abre a passada atlética.

Manhã de domingo em fuga. Passional, acredita, o dia paralisa os sentimentos. Não há aquele exercício do olhar, reconhecendo entre documentos a semelhança da vida, o simulacro em papéis, vida que não pode ser, porque são números, estatísticas, gráficos, desenhos. Em sua crença, homens são iguais,: incomodam-se, reagem, batem, reclamam; respiram, sentem fome, dão soco na mesa, urinam na tampa do vaso e ganham na identidade um desfocado número, sem imagem e cor. Lidar com papéis torna a vida mais fácil, não há espelhos. De vida mesmo, as incômodas lembranças de pareceres a dar, prazos a cumprir, coisas que tomam todo o tempo.

Agora, olhando para as pálidas árvores que crescem em meio ao cinza do concreto, percebe que poderia singularizar mais a personalidade, desconfundir sua rotina contabilizada.

E há vida do lado de fora. Da janela do escritório, caso se deixe levar, é possível enxergar muito mais que passantes desfigurados. Sim, são rostos de gente, sofrida, oprimida, festiva. A multidão tem uma cara só ou mil . É possível que aquele velho seja o seu pai, que este nome impresso no papel agarrado a sua mão, como se fosse um gesto desesperado, seja o de alguém de carne e osso, que infelizmente embarcou num transatlântico furado e agora depende de seu parecer e assinatura.

Pode ser que neste lindo domingo de sol, no meio da caminhada pelas ruas cinzas decoradas de árvores pálidas, meros espectros de uma natureza petrificada de feriado, ele se dê conta de que a vida está muito além do espaço possível a percorrer, que não é a calçada limpa e sugestiva por onde corre a sua imperial majestade, diplomada na melhor universidade. A vida, maior do que o alcance de seus olhos de cifras, empréstimos, juros e negociatas. A vida abarca o oculto dos papéis, o insondável aos olhos, ao toque de Midas.

Manhã de domingo, os cabelos molhados pelo suor nem lembram a efígie de um homem encarcerado. Caminha de volta para casa Talvez alguma coisa esteja diferente, quem sabe algo mudou. Modificado o rumo, procura um banco de praça.,compra um jornal, sintonizar-se com a vida novamente, envolver-se nos tipos escuros do gordo jornal, que traz com certeza alguma coisa sobre aquele homem inchado feito um porco abatido, e reconhece, somos uma carcaça pronta para os urubus .

É uma manhã quente de domingo, mas se anuncia, no boletim do tempo, uma grande chuva para o final da tarde.

Renato França

Nenhum comentário:

Postar um comentário