segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Passagem sobre o rio



“Não acredites neste breve sono;

não dês valor maior ao meu silêncio;

e leres recados numa folha branca,

não creias também: é preciso encostar

teus lábios nos meus lábios para ouvi-los”

Lia Luft , Mulher no Palco

Incomoda-me menos estes passos indecisos, pavores estampados sobre os olhos que se interrogam por quê. As mesmas ondas de “moiré”, por onde desfilavam os dedos, trafegam a distanciarem-se do quarto. Não sei se percebe os olhos úmidos, esse silêncio impermeável que me aprisiona. É um silêncio igual, o meu repouso aqui jogado. O som dos passos na chuva, de um sombrio sapateado, de um gotejar pálido. Não são estas as suas mãos, cobrindo o meu corpo.

Esperava o cais vazio nesta noite, e sua imagem resplandecida nas águas do rio, o brilho intenso dos lençóis. Melhor ter ouvido o que nunca se ouve e parte disso tudo se situasse apenas em meu sonho. Calaram-se os olhos para sempre, esse egoísmo de não dividir a dúvida. Agora nem se interpõe aos passos vacilantes, tinha certeza de que da cama deslizaria sem sentido, as mãos apressadas à procura de um sapato qualquer, não importava nada escolher. Esse quarto entrecortado pelo borbulhar irônico de uma espuma, que sobe as costas acariciando-me, indiferente, na busca da meia que combinasse com o “scarpin” vermelho dado de presente no primeiro mês de casamento, minhas costas e a língua confusa de frêmitos, da cama deslizaria profundamente nua, as vestes jogadas às pedras, no embate final.

Uma marcha estranha nas narinas, os cabelos ensopados pela chuva melancólica cobrem os olhos. Pessoas passam, vejo rostos embriagados, vagos e distantes. O silêncio continua o mesmo do copo de uísque sobre o piano da sala, o consumo incontrolado de cigarros, tomados da dispensa. A mudez atrevida da música de Jazz, um solo de sax muito frio, gelado, gravado em Oslo, talvez numa tarde cinzenta, denuncia o meu pranto. Mas seus olhos não se desviam da silhueta que se desfaz à frente, a transparência refletindo meus desejos mais puros.

Você não se ilude fácil. Nem me convence esse desleixo. Seus nervos estão estremecidos e derruba o cinzeiro. Ainda assim não diz uma palavra. Mesmo depois de deixar meu corpo misturar-se com a luz você não recobra os sentidos, continua a vaguear os olhos como se fosse estranha a situação. Esperava de mim o silêncio, o mesmo silêncio de medo e de angústia. E as expressões nervosas são atiradas ferozmente, lapidando dolorosamente os seus escrúpulos. Seus olhos replicam. Meu retrato de prantos jogado sobre o lençol. Por que fecham as pálpebras estúpidas?! Desnorteada, a mão segura-se. Mas estes membros caídos acusam-no, lívidos de raiva. Se cambaleio, prazerosa, vem logo essa mania de amansar-me lentamente, mania que conheço tão bem, como se quisesse transferir de mim toda a castidade entranhada.

Nua e de barriga para cima, a mesma posição de desprazer que serviu a você. As palavras sempre me escaparam, a paixão sempre me pareceu algo de roubado, algo de culpado, o entupir-se suicida de cigarros, embriagando-se de jazz e uísque. Para mim, apenas a proibição, para que da boca esvaísse-me seca e ávida, e meu ventre contraísse-se alucinado. Restou-me o fio de prata formado pelo repingar da chuva, empalidecendo-me totalmente, desembocando-me eternamente nestas ondas, solitária. Infernação de pose.

Seu cabelos ondulados me afogam, peso que me oprime, e você acorda tarde desses emaranhados, desse lodo, não sabe se estou presente ou se parti quando o vento bateu a porta. Sua recusa é comovente. Por que se distanciou tanto? Sua mão poderia segurar a minha, rodopiando o “scarpin” no assoalho, a ponta do salto a girar lentamente, quase no ar, para ser devorada viva. Desfalecemo-nos ao pé da cama, nosso abismo. O vento fechou-me a porta e o ventre. O lençol de lágrimas cobre-lhe até a cabeça, sua renúncia pronunciada no olhar incrédulo.

Sem coragem, abandona-me a mim, como um líquido despejado inutilmente. No ar alcanço as espumas, desencontrados sentimentos. Nem me viu mover os lábios de amor, após cambalear egoísta. E o beijo o noticiário da manhã descreverá, fará menor o susto, o beijo que deixei na penumbra. Fará pior o susto, (mas o que posso fazer?). Incomoda-me menos o envoltório opaco, encasulando-me, que as vozes que ouço turvas. Não me despertam desse sono.

Renato França

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