sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

DESLIZAMENTOS.(landslide) - uma avalache, uma montanha de gelo desabando... o silêncio ensurdecedor das geleiras..


Eu olho e vejo esse homem. Sentado em sua poltrona, deixando que o mundo se desdobre nas telas do vídeo. Ele tem a mulher no quarto e ama aquela mulher. Aquela mulher é o sonho de sua vida e ela está lá, em seu silêncio profundo, junto às estrelas, na constelação infinita de seu sonho, do sonho dele, homem carcomido pelo desejo, homem retrocedido pelo amor.

Eu vasculho suas esperanças e vejo um mar lodoso, como se a morte o alcançasse a cada instante de medo, quando se fixa no vídeo, cujas imagens não passam de projeções de vida encarcerada.

Uma avalanche toma os sentidos, vê deslizar sua luz sem brilho, num sol da meia noite. As geleiras são brancas como a pele da mulher que rola solitária na cama, desfilando na passarela de seus olhos, imagina o toque na camisola cobrindo a pele clara, coberta em lençóis simuladores de gigantescas montanhas vestidas de neve. Ele queria com a mão deslizar naqueles precipícios, queria dizer em seus ouvidos a sua história, a sua ridícula história de desterro. Mas não consegue ir além da vontade.

Esse homem quer gritar, quer dizer ao mundo que gostaria de ser outro, ter outro corpo, ter outra voz... ele gostaria de dizer à mulher a vida me fez assim, mas no fundo quero mudar, que pode ser quem ela quiser, ele pode ser o astro, ele pode ser a fantasia, ele pode ser o mínimo... sua garganta está cortada, seu excesso de cotidiano o obriga a buscar o abrigo da sala, na espera de que o calor do sol derreta o frio das geleiras, e da água brote a nova vida.

Eu olho essa mulher e a vejo em seu sono profundo. Mergulhada no abismo das geleiras, submerge no lago escuro que está localizado no fundo de si mesma, como a cobrir-se do frio, do frio que lhe toma o corpo no silêncio ensurdecedor. Ela busca distanciar-se daquele homem vidrado na tela da TV, ela vigia seus passos, sabe que ele entrará no quarto a qualquer instante para roubar-lhe a alma, seu último bem, sua última posse. Ele vai penetrar no quarto querendo o seu íntimo, coisa que ela não dará, seu território limítrofe. Ela se arma de frias lâminas cristalizadas da água do banho, quando de lá percebeu aqueles olhos desafiadores investigando os detalhes de suas linhas. Ela sabe o quanto ele a deseja, ela sabe o quanto ele daria para tê-la sempre ao seu lado, porém por mais que entenda seus gestos muitas vezes delicados, não permite que a bandeira da conquista seja fincada no topo de si. Seria o fim da mulher, seria o início de sua catástrofe, seria a derrocada de sua majestade. Sempre imaginara o seu império independente e soberano, mesmo nas horas de fome, no desespero de sua solitária sina. Permitira a proximidade, mas nunca a invasão. O amor deve ser consentido, nunca assaltado. E esse homem não tem limites, ela pensa, por isso seu refúgio em icebergs, os lençóis da cama a disfarçar suas trincheiras, o seu sono vigiado, o seu silêncio que grita.

Eu vejo esse homem e tento ouvir seus pensamentos, sei que ele insiste em organizar as palavras para dizer simplesmente que ama, vejo seu medo estampado nos gestos, vejo seu sonho de felicidade amortecido pelos lençóis. Ele olha para a TV e admira o beijo enlouquecido do casal da novela. Não há qualquer som, apenas o entrelaçar das mãos e o movimento das bocas. Ele chora, ele sabe que aquele beijo nunca será seu, aquele beijo é uma ilusão perdida no deserto frio de seu quarto, onde adormece a mais bela mulher que ousara conhecer. Pergunta-se como ela foi parar lá, num território tão seu conhecido, nas fronteiras de seus domínios, sem entretanto estar lá de fato, lá, como gostaria que ela estivesse, o sorriso aberto, a voz suave, que reclama sua presença, o olhar de pedinte, buscando a força de seu corpo viril, na esperança de ver os desejos convertidos em realidade plausível.

Realidade, como odeia essa palavra, como incendeia em si qualquer ímpeto de raciocinar sobre a ausência. Ela está ali, mas é como se não estivesse, por isso o exílio, prefere vidrar-se nas cenas da novela, e se ver lá, vivendo numa paisagem mais feliz, encenando o grande papel de sua vida. E a cena se completa com a porta do quarto cerrando-se para que ninguém penetre na intimidade do instante. O comercial desperta o homem.

Ela ouve os passos. Ela sabe que agora terminou o capítulo dessa noite. Ele vai entrar e deitar-se ao seu lado. Ele vai tocá-la, mas não haverá qualquer reação, mergulhará a mulher no fundo de seus abismos e ele não terá fôlego para segui-la, ele desistirá, pois ninguém resiste a uma avalanche, a um deslizamento nas geleiras em que se refugia. E sabe que amanhecerá um dia novo amanhã, que no café ele a olhará novamente e perguntará como foi sua noite, tentará decifrar os seus sonhos, tentará sentir-lhe o aroma quente de pão de queijo. E ela dirá sorrindo que foi uma noite agradável.

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