segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

OLHOS NOS OLHOS

No hotel, olhou seus olhos do espelho. A barba estava por fazer, os velhos espinhos maltratando a face. Mas os olhos, ali como a interrogar até quando. Ali como a se esconder do tempo que passa. A ilusão de acreditar que não há rastros ou vestígios, a lâmina corre a face com a delicadeza de um toureiro alisando o punhal no momento em que mira nos olhos do touro.

Olhos nos olhos. Verdes de esperança.

Ele não se cansa, ele ainda crê. Sua infância alimentada no sonho: um homem de colarinho e terno, cabelo brilhante de bilcreme, camisa alva. Um comercial de TV, em preto branco, endereçava o sentido à vida, a loira de cabelos compridos e saia curta, de botas e blusa estampada, acho, de flores. Os braços envolvendo o pescoço, terno abraço, e um sorriso como se fosse o último. Uma cena que se repetiria todos os dias, a maleta 007 à mão, o corpo quase sem responder ao chamado da bela loira de cabelos compridos, uma tiara combinando com a blusa de estampas, imagino que coloridas, de alguma forma em dissonância com o terno escuro, sombrio e bem passado do homem, aliás, esse homem parece agora transfigurado em figura esquálida, caído num quarto de hotel, olhando no espelho e se cortando com a gilete enferrujada, de seus olhos a pergunta — será que há algum sentido em estar aqui? — olhos nos olhos, tentando recuperar um rosto abandonado há muito. Em algum lugar.

Um jardim enfeitado de pedras coloridas, pintadas pela mão ordenada da mulher, a entrada da casa mais parece uma ilha mágica, cheia de cachoeiras encantadas, falantes, há de fato um toque de magia nas gaiolas que enfeitam a varanda, e um pássaro. Logo um canto se espalhará, é o que se imagina. E a mulher em cena, com sua vara de condão, brilhando entre vaga-lumes indagadores sobre a intrusa presença do olhar no mundo encantado, olhos nos olhos. Vê-se que a vida é de verde esperança, mas indiferente ao que escapa da dor, não há dissimulação, somente a sensação de frescura, como nunca sentira aqueles olhos.

Despertar. Voltar atrás, deixar que o mundo aconteça despercebido de sua presença. É duro acreditar que qualquer palavra dita é nula, que o reino encantado da mulher continuará a existir, sempre, independente da dor do homem, que se volta para o espelho e se afoga no verde revolto do mar alto dos dias, a maçaneta do quarto do hotel que lhe reflete a imagem esquálida, mais torta ainda que no espelho, a cabeça enorme, sem pescoço, os olhos sobressaltados, a boca dilatada, imagem de borracha que gera piedade aos olhos, olhos nos olhos, um corpo sem realidade, não-corpo, e pensa, o real é isso que o faz sentir-se a personagem criada pela maçaneta redonda, mundo prateado, como a lua do reino mágico da ilha misteriosa, produção da mulher, a varanda e as gaiolas vazias e um canto lúgubre de um pássaro solitário. Dissonante.

Que pássaro, que gente, quem virá libertar a alma do homem? Aprisionada na gaiola, as mãos da mulher transformaram-na em um vazio, enfeitado de flores, escondidos os espinhos, sem perfume, tudo para transparecer a calma dos sonhos, soterrada a vida, oprimida dissolve-se no ar sob a forma de canto, canto inútil, pois somente os olhos para ouvir. O vazio foi um feitiço eficiente, a competência da mulher matou-lhe a alma.

No hotel, um anagrama de vida.

Olhos nos olhos, abertos olhos que se interrogam sobre o destino da imagem do comercial de creme para cabelo, o homem como gostaria de ter sido. Pensa: aquele terno sisudo, a gravata empinando para receber o abraço da mulher loira de blusa psicodélica, saia curta e de botas, como a Suzi da vizinha, a mulher mais encantadora que conhecera. Sonhos podem durar gerações, os produtos não sobrevivem à ruína, olhos nos olhos, o tempo arbitrário não escolhe vítimas, esse homem vê todas encerradas em túmulos, olhos vidrados, lágrimas escorridas em faces que dizem “você nunca me amou, você não sabe dizer adeus”; no mundo do espelho, no mundo da face que olha para si mesma, olhos nos olhos, o medo de nada acontecer quando terminar de fazer a barba e ter de enfrentar o mundo de lado de fora do quarto, mas as gaiolas devem ser destruídas, não há pássaro que cante uma melodia funérea eternamente, é certo, no verde dos olhos brilha uma antiga esperança, que não é uma farsa do tempo, não é o fruto de uma alma atormentada, soterrada no solo que criou para enterrar seus mortos.

Olhos nos olhos, é possível deixar que o corpo esquálido desenhado na maçaneta se transforme no jovem executivo do comercial de bilcreme, e conquiste o mundo nos braços de uma mulher que não seja a sua cara, mas o seu sonho, o seu desejo.

Renato França

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