domingo, 16 de janeiro de 2011

ALAGAMENTOS


Um longo dia, uma longa noite. Olhar para o quadro na parede e nada ver além do rosto cansado dos amassos do tempo. Um rosto hoje desfigurado, ou cuja figura apenas se marca de experiências sofridas. E olha para o peito, vê o sangue que escorre, o sangue que elimina a vida, como rios correndo para o seu trágico final. Um rio que nasce feliz no alto de sua montanha, e corre como um menino cheio de alegria, um menino que acredita na bondade humana, um menino cheio de esperanças, o rio, o menino, passeando na mente de um homem, que olha no espelho o fio perdido de sua crença, e o menino perdido no caminho, na descida aos umbrais, no oceano de sua vida.

O quarto dos espelhos, por que sempre eles... eles sempre dizem essa dura verdade, o tempo marca, o tempo corrompe, o tempo dilacera com suas lembranças, e a mulher aparece com sua imagem invertida, quem é essa mulher que lhe tira todas as forças, quem é essa mulher que lhe toma a alma... no tempo do amor as coisas pareciam leves, o toque adornado de fantasias, um íntimo festival tornava a vida um rio suave, descendo com sua energia por entre as pedras de uma região serrana, as pedras que poderiam impedir o seu trajeto, as pedras que serviram até para construir palácios no meio do caminho, um íntimo festival ver a espuma formando longos lençóis onde corpos se amam, naquelas cachoeiras quantas histórias de amor grafadas, as pedras testemunhando a nudez, e o rio descendo suave, tocando suave a pele sob raios de sol recortados pela roupagem verde da mata. O rio desce acreditando ser esse o momento crucial da vida, mas infelizmente há também as tormentas de inverno, e as chuvas tornam esse rio um grande mal, arrastando os amantes para os precipícios, dilacerando as esperanças de jovens, de famílias, o rio nervoso, o rio cruel, o rio matador, o rio sem sonhos. O rio devastador.

O rio homem desliza para o horizonte... ele quer o mar.... ele quer se salvar... ele quer encontrar a sua gente... mas essa gente é salgada, essa gente, que na aparência parece igual, busca outros ideais, guarda no seio outras vidas, outros vegetais, outros sonhos, o mar barulhento, o mar dos poemas, o mar da vida, o mar da morte. O rio quer abraçar pessoa tão potente, mas o garoto é inocente, acredita ser esse o amor de sua vida, corre em sua direção como se esse mar fosse a grande resposta para os seus enigmas, que todo o mistério de sua caminhada encontre naquele corpo a resposta definitiva, o seu leito... esse amor que acredita na eternidade, os dois velhinhos balançando na varanda, olhando-se nos olhos cansados, azuis de mar, azuis de amor.

Existe uma madrugada. O silêncio dela atordoa. Olha o mar na quietude, o ruído das ondas. Do outro lado corre o rio, no rio navegam os projetos um a um, em seu desfile de toda uma vida. Um menino correndo, perdido entre imagens criadas como brinquedos. Um quadro na parede do seu quarto, esse olhar vazio de quem se perdeu dentro de seus labirintos, sem fio, sem esperança. O homem pensa nas lágrimas que já verteu, vê que suas alegrias se foram... na mesa posta apenas os restos, farelos de pão, canecas sujas...

Existe uma manhã, que chega aos poucos... no telefone a voz do mar convidando a enfrentar abismos... na parede o quadro é lido novamente, e há nele detalhes, quase imperceptíveis, mas o olho de boa vontade poderá enxergar novos caminhos. Por que a amaldiçoar o cotidiano, por que deixá-lo minguar na sua sorte, não haverá outros mistérios a desvendar nesse grande mar? Será possível Ter vivido tudo?

No quadro os barcos sobrevivem a uma tempestade, ou pelo menos a enfrentam, as ondas enormes não conseguem esconder a imponência do mastro, e a bandeira está, apesar dos ventos enfurecidos, em sua total abertura, desafiando a força da natureza.

Onde está essa bandeira? Onde o homem a esqueceu? No rio de sua imaginação aparece ele, o menino, ainda sorridente, desfilando junto aos mortos, juntos aos restos. Ele recolhe as esperanças despedaçadas, toca as feridas de um a um dos caídos, e com suas lágrimas lava a dor derramada no piso do convés.

“Ah! Esse menino vive no meu peito... esse menino tem os olhos de meu filho, tem os meus olhos também... será ele o tal anjo da guarda?”

Esse o pensamento desse homem, agora mais decidido a deixar o quarto e enfrentar a tempestade que lá fora grita. O quadro continuará ali, com seus navios em combate, enfrentado o perigo do mar... o mar, esse grande mar que reflete o céu.

·

A água da chuva desliza pelas ladeiras formando enormes cachoeiras. As ruas completamente alagadas, não havia como transpor as correntezas para alcançar a outra margem, a calçada paralela, ou seja, tomar uma direção oposta, pois era isso o que buscava ao descer aquela rua, enfrentando a chuva torrencial com seus pingos grossos como lâminas afiadas, que ao tocarem a cabeça deixava o reflexo do impacto como uma dormência. Pingos duros como pancadas no cérebro. Como cobertura buscara um jornal velho, único objeto que apareceu à mão depois da longa espera na fila do banco, espera inútil porque não havia pagamento a sacar, não havia resto de saldo. Deveria então seguir a pé até o outro lado da cidade, da sua cidade querida, sua confidente e amiga, testemunha de suas desventuras e caminhadas no silêncio.

A chuva denunciava a tristeza de crianças e de outros seres mutilados na alma. Almas desesperançadas, cujos sonhos eram vaga lembrança de um tempo que jamais foi tempo, que sequer ousou criar imagens, pois parece pecado ferir a realidade dura, a realidade concreta, tão cruel e perversa, quase sempre encoberta pelo sorriso orgulhoso das mãos que enfrentam noites distribuindo sopa quente aos miseráveis, mãos satisfeitas pelo cumprimento do dever, devotas da fome, do frio. Olhava essas pessoas como se pensando deixar-se levar como elas, ou com elas, ao Deus dará. A chuva ameaçava os anjos da noite, não haveria sopa quente por algum tempo, e o melhor era estacionar numa marquise que fornecesse um metro quadrado que fosse de terreno seco. E a chuva persistia.

Ao longo da ladeira o rato se debatia para não morrer afogado, a correnteza o arrastava, percebia-se a força que fazia para se agarrar nas frestas do meio fio, mas estas pareciam cheias de limo... o rato tentava em vão fincar as unhas em movimentos rápidos. Mas tamanho era o seu desespero. Sabia, talvez, que jamais voltaria ao seu ninho seco, e que suas crias não beberiam mais do seu leite... estranho mesmo era olhar para esse rato e tentar admirá-lo em sua inexistente humanidade, como se de fato estivesse ele cheio de sentimentos nobres, como o de alimentar as suas crias, ou melhor, a angústia por se sentir totalmente impossibilitado de oferecer o seu seio, agora irreversivelmente na sensação de fim que isso causava, não sei se ao rato ou a ele, interlocutor da morte que chegava com a tempestade. O rato vivia ali a mesma experiência dos moradores do morro de sua infância, talvez naquele momento soterrados nos deslizamentos poderosos de uma chuva insensível à dor.

O rato vivia ali a mesma experiência dos muitos moradores do morro que servia de vista aos olhos do homem quando este se debruçava à janela para respirar no ar causticante da cidade. Apartamento ou cortiço, que importa... ninho de sua vida, a sujeira companheira, a mulher desaparecida... o rato desesperado agarra-se à calçada e consegue em seu quase último esforço alcançar um vão, seu caminho à vida... teve sorte o coitado, pois na madrugada de ontem soube da morte de seis crianças vitimadas pelo deslizamento de um barranco... todos soterrados... o rato agora está a salvo e esse homem quer voltar para casa após perceber que nada poderia fazer, o salário não foi pago, sua conta bancária gozando da sua cara, sarcasticamente.

Só lhe restava voltar, num ritmo homérico pelas ruas da cidade até atingir as escadas do velho edifício de três andares, tombado pelo Patrimônio Nacional... prédio de tantas histórias, como um álbum de retratos. Talvez por isso não se incomode com tantos detritos acumulados no corpo, há meses, desde que, vendo-se sozinho, permitiu o lixo em si como uma decoração. Alcançar o prédio velho e com ele ficar à mercê do tempo.

Mas seus olhos se enchem de lágrimas... o quadro está lá... duas embarcações enfrentam uma terrível tempestade, o quadro desprendeu-se da parede e serve de balsa a um rato, agarrado a uma casca de banana, sua refeição desesperada. O homem percebe o alagamento, as paredes não oferecerão resistência, as águas chegam de todos os lados... do banheiro, do teto através dos lustres... a ação Terrível do tempo... o homem chora porque queria Ter forças para remar, forças para retirar com seus braços a água que invade a sua alma... e como o rato, nesse momento crítico, ainda Ter o prazer de devorar o que lhe resta... há trovoadas, a chuva não vai parar... o rato nadou até a sua toca, acho que saciado... o homem corre e se abraça ao quadro... o quadro de sua história tem de ser salvo do alagamento... quando entrou deixou a porta aberta, as escadas são enormes cataratas... não tem dinheiro, não tem nada... a roupa maltrapilha deverá ficar ali mesmo. Ele se agarra ao quadro, mas sente que melhor será mesmo salvá-lo. Suspende-o acima da cabeça. O quadro lhe protegerá dos pingos que parecem facas, sim, o quadro não tem salvação, mas poderá servir de embarcação, de teto, de passagem para o outro lado de um mundo hostil, mas um mundo que com certeza lhe oferecerá novas escadas, novas paredes, deve haver esse lugar, a tripulação luta contra os ventos, não quer morrer no meio de um oceano escuro, protegem os mastros e as velas, o outro barco aponta seus canhões numa batalha terrível, de um lado a natureza com sua força destrutiva, de outro o desejo do homem de submeter, de abordar e destruir bandeiras... a bandeira tremula sob um duplo ataque, o quadro cristalizou essa cena que não tem fim. O quadro com certeza não resistira ao combate final contra os pingos pontiagudos, mas o homem começa a sentir feliz porque vai sobrevir a este alagamento.

Renato França

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