domingo, 30 de janeiro de 2011

A VIRGEM DO MAR


A virgem do mar, na esteira das águas me olha com olhos de sede. Mergulhada na sombra da noite, entre as ondas se alucina, sonha seu encontro com o soberano das marés, o princípe perdido. Dizem ser uma alma imortal, há séculos encantando as mulheres perdidas, vasculhadas em suas entranhas até a morte soterrada no fundo, esperanças destroçadas. Essa alma é solitária, apesar de colher no coração a paixão das tantas sufocadas, tantas perdidas em ilusões. Sente pena e se aproxima, oferece os braços fortes, o peito amigo, lança-se sem rodeios simulando sinceridade. No fundo, o desejo que sabe, o desejo que purifica a morte de que se alimenta.

Hoje ela está aqui, à beira do precipício. A virgem do mar espera os braços do seu sonho. Morre a cada dia, morre todas as noites.Lágrimas, nas ondas em que adormece entrega o sonho.

Sei que ela se jogou bem antes, seu destino de deusa traçado na linha turva das marés, todos os dias ele vindo com o enorme peixe, a barba grossa como a pele endurecida de sol, os cabelos dourados. Ele, que dias e dias passa em lugares que se perdem no olhar, o horizonte mergulhado no precipício, ele não conhece do mundo nada além dos ventos, das ondas, das mudanças repentinas de tempo. E traz tudo isso nas mãos. Não se dobra diante das grandes vagas que investem nos mastros com força titânica. Deposita sua fé nas sereias. A virgem do mar sabe de tudo isso, ela mesma se divinizava com uma cauda de peixe, pequena ao sol, nas pedras, e dali tentava fisgar os cabelos do seu pescador.

Tentou de todas as formas segurar a alma livre do pescador, prometeu acorrentá-lo nas paredes de uma casa, em terra firme, criar raízes, casa cheia de quadros coloridos, marinas que poderiam ser o simulacro de vida do homem, cabelos ao ventre oferecido, a boca mordendo a língua até sangrar a palavra, tão seca de amor, transbordando o desejo. Dormir no peito cabeludo, e ele serivi-la com seu corpo em eterna eternidade.

A virgem menina buscava conchas na praia, esticava os finos braços ao sol para sentir na luz o calor do adorno que logo estaria em volta do pescoço, a estrangulá-la, a palavra. Um dia, como tantos dias vividos na imensidão da areia, ela deixou que no cordão se enlaçassem braços, fortes e seguros, queria para sempre aqueles braços. Na distância aguardava a visão de um barco se aproximando, e entre as pernas percebia sua chegada. Doce, cálida, o mar sereno se abria para receber na praia o seu deus. Com as armas que trazia nas mãos, o pescador desbravava um mar desconhecido, mundo insondado, a terra prometida. Gozava das delícias do banquete oferecido pelas ninfas aos grandes guerreiros, a ilha que abrigava os argonautas. A ilha negra, seus canais escuros se abriam à luz. E como rejeitar os perigos desse mundo novo, e como manter-se distante da escuridão que vem após a glória do dia?

A travessia do mar aconteceria todos os dias, tantos que se perderiam nas contas. E como era bom, era a frescura após centenas de milhas a remar na busca do grande peixe, e alimentar mil bocas do seu povo. Ele um navegador, amado como um deus. Ele, senhor das marés, seus compromissos escritos nas estrelas, na noite que tem o gosto de despedida, a virgem jogando suas lágrimas nas águas, chorando o adeus de quem nunca se deixará, nunca atracará o barco em praia serena, longe disso, virá beijar-lhe a boca, fazer-lhe filhos, mas retornará sempre para a imensidão das águas, onde a vida grita o seu nome, clama seu amor mais profundo, a sua alma.

Vejo os braços estendidos às ondas. Crespas, logo o abraço que a levará para o fundo. Virá então esse lindo jovem, que já beijou as fenícias, consolou esposas de Argos.

As impressões do sonho. Ela se levanta rápido, lava o rosto, escova os dentes. O Banho. Ainda assim parece envolvida em braços amorosos, a mesma sensação que sentira à noite, diante de uma praia, ondas chicoteando a língua. Mas agora não havia o desespero que fizera com que se atirasse às águas. Havia pedras, ela pressentira a presença de alguém, desses mistérios do sonho, talvez, com certeza, sua mania de transformar os desejos em objetos perdidos. Revirava o tapete, lembranças arquivadas como lixo, sob os pés, falsamente seguros. Deveria tomar decisões no dia, o dinheiro de muitos em suas mãos. Mas a sensação era outra, renascida. Na alma dizia a si mesma, fez-lhe bem aquela morte.

Chamavam-na a virgem do mar. Uma deusa. Menina pura, inocente, coitada, se envolveu com um pescador. De verdade era homem casado, dizia um morador da praia. Modesto. Sim, o nome era esse, Modesto como o pai queria. Vítima da paixão, reclamou uma senhora descabelada, a garota grávida não tinha para onde correr, somente o mar imenso, ali na frente, daria abrigo. Soube que queria ser uma sereia, era menina bonita, desde pequena andava com os cabelos brilhantes, a pele dourada. Dizia sentir sempre a presença dele sobre ela, e corria. Eu bem que conhecia, ela falava em um deus marinho. Acho que era louca.

Hoje a loucura toma conta de mim, não quero nada. Essa vontade me leva, sempre me dá essa vontade de ir, para além, e eu nunca. Já perdi a menina de dentro, hoje mulher, quem diria que o senso de liberdade se tornaria um flerte inútil nos meus olhos. Nunca fui livre de fato, nunca senti nada maior do que esse sufoco no corpo, esse fogo. Busco as águas, hoje eu acordei de um sonho, ou mergulhei inteiramente nele, sei lá, alguém me espera, alguém me dá esperanças, do elevado do Juá eu posso divisar novo horizonte, e posso crer que me jogaria, se pudesse, do alto das pedras, me jogaria sim, porque eu vejo os braços desse mar marginal da vida, minha fronteira.

Eu me chamava virgem do mar, eu fui enganada. Entreguei minha vida a um pescador, homem bonito, braços fortes. Essa mulher pura, inocente morre dentro de mim, mas ela ressurgirá das águas, minha paixão, vejo meu herói. Esse homem, eu ainda o vejo em sua embarcação solitária, enfrentando furacões, ele, com seus músculos em sobressalto, os cabelos eternos sob o sol. Mas eu me enganei.

Renato França

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