terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A Serpente



Temas sobre temas, num claro porvir de sombras rubras. Assim o coração pensa, tramas da aranha no ângulo do quarto. No divã, uma serpente masca os cabelos. Ruiva e mística, vermelho o coração que se abre em um debruçar macio. Além do quarto a janela, as buzinas, o esvoaçar de vozes em desvio, a noite na cidade que grita infinitamente. Nesse momento, ela é toda ouvidos, o que lhe resta dos sentidos quase mortos — quase sem corpo — a responder os estímulos do roçar no tímpano — ter os sons sobre, nada ter além de temas, do antes, do antes da aranha devorar aquela mosca entregue à sorte, e que num vôo distraído nem percebeu as tenazes mortais da espera.

Poderia sorrir àquela espera, poderia ser sua aquela presa, olhar-se no espelho e revirar a face em direção da mesma aranha. Agora com olhos de mosca em desespero. Assim à noite, em sua espera de fim, as vozes roçando o tímpano que teima decifrar de quem pertencem. Que eco, que som faz agitar os guizos e a língua.

A porta do quarto, o girar da maçaneta. Desperta a serpente.

Agitando o chocalho sai à caça. Mas agora aranha, mil tentáculos. Este corpo cheio de ambigüidades ameaça a multidão de corações sonhadores. E ela desliza do espelho na ânsia de raspar o brilho ancestral das mulheres de invenção (como nas velhas narrativas de um quarto sujo de uma menina no abismo, trancada entre móveis decrépitos e ratos alcoviteiros, aquelas mulheres que invadiam a sua miséria infernal, única ponte com o universo lá de fora, um mundo longe do seu círculo, outra existência. Perséfone nas garras de um impenetrável Plutão, o quarto infestado de moscas — lá, naquele passado já distante da mulher, em sua infância, tempo obscuro, de meias lembranças, recalcada a sua sina, surge a personalidade de aranha) e rompe com passos rápidos a morbidez da memória. Viva, sua língua eloqüente canta agora o momento em que um dia desejou saciar a sua sede e romper com as portas de sua alcova. Romper com as correntes que a prendiam à alma infame de um homem cruel. Ela mesma assumindo a sua crueldade, tonificada. Precisa saciar sua sede, sua ânsia. Desde de que deixou a serpente lhe tomar totalmente a aparência, adquiriu a força dos sobreviventes.

“ Veja esses olhos profundos, o corpo lânguido e esguio, talhado. No espelho roço esse desejo de envenenar, de dizer quem sou”.

Coisifica-se, e ganha as ruas.

Numa avenida há tantos homens, embriagados, vendedores, garotos sujos, qualquer um serve de alimento para sua boca voraz, mas sempre a preferência pelos mais sublimes, os apaixonados poetas cheios de fogo no olhar. Se antes havia uma sensação de torpeza, agora a mulher afasta de vez qualquer resquício de angústia, é a gargalhado em seu chocalho, é o encanto das ruas, a face que poderia ser sua, porque ao menos herdara um pouco de humanidade, traços da santa que como um véu dissimula a sua triste figura, seu verdadeiro rosto, de moça perdida, que só o espelho conhece.

São duas da manhã. Ela anda. Os carros cruzam, faróis tentadores; os braços passeiam livres pelas alamedas, pelas vias abertas. O tráfego é livre, livre é a alma que encarna a cidade com seus descaminhos, que despertam as paixões fugazes que sentimos. Quem anda é a mulher, ela, a mulher tecendo com seu fio a teia atraente. O caminho, o rastro. Seu perfume sobrevoa o ar. Sua forma de aranha.

Seguem seus passos (que na realidade são aromas) alguns homens estranhos. Será o momento? Ela pensa. A interdição caminha ao lado, ameaçando os nervos. O “é agora” próximo à loucura. Sim, o desejo daqueles homens aperta o passo, alucinados agora por sentir a fragrância que foge ao corpo. Ela ensaia um gesto de medo e repulsa, finge correr, surpreende com olhos espantados. A aranha apenas desloca-se de sua fixidez, tece centímetros de sua espera;

( em um vôo pálido um mosquito; pálido porque o sangue do rapaz anêmico do hospital é podre, contaminado, e o mosquito, embora saiba de seu fim trágico e próximo, sente-se senhor de si, seu orgulho ostentado na perturbação que causa, mas sabe que o seu sangue imprestável é mais uma mentira das tantas contadas pelas enfermeiras, nos seus casos de amor alucinante com os médicos, nos adultérios cometidos entre camas e doentes, e assim o mosquito em seu derradeiro vôo como que homenageia aquele moribundo magricela estirado infeliz na cama, fingindo a sua soberania em meio ao ar, com o corpo cheio de um sangue corrompido. Sabe ser o sorriso o aceno de um fim, um fio malicioso, o sorriso daquela mulher, que já não traz na face o seu disfarce, mas é um sorriso, diferente, é verdade, do esculpido na menininha perdida no quarto fechado, quase enlouquecida por aquele pai, que toda noite vinha depositar seu corpo de mosca sobre o dela. Até o dia em que a teia rompe seus limites e revela seu sorriso fatal, ela já transformada, ela já pronta, deixando para trás o corpo morto, da criança, do pai, da porta, depois de um fio rubro escorrer até o fim , a imagem de um punhal tentacular, as presas da serpente, o fio-marca daquela aranha no ângulo do quarto, esperando, hoje, o anêmico das ruas entregar-se às suas presas de víbora, pelo simples prazer de um vôo distraído). E pensava que fosse assim.

Tombam os homens. Inesperadamende, quando se imaginava o êxtase, ela, transmutada, expõe suas tenazes. São corpos perfurados e um vulto que desliza na calçada até sumir na escuridão do quarto, satisfeita a sua sede. O sono profundo, o amargo que não cessa na boca. Tudo volta, a cena de sempre.

Temas sobre temas, num claro porvir de sombras rubras. A náusea do infecto quarto da infância persegue a serpente. Até quando ? Moscas passeiam, moscas morrem, mosquitos zumbindo na irritação do tímpano. Vozes no turvo da mente. É preciso fazer algo contra esses seres deploráveis. Apressar-se em escondê-los. Ou devorá-los. A aranha procura o ângulo do quarto. As vozes estão a distância, os olhos na janela.

Renato França

2 comentários:

  1. Parabéns pelo post. Obrigado pelo uso da “mulher e a cobra”. É sempre gostoso ver um desenho da gente viajando na net. http://www.flickr.com/photos/romacof/3407634137/in/set-72157616260924348

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  2. Desenho lindo.Assim que o vi sinopse deixar de utilizar..por favor..se nome para dar os créditos e por favor me desculpe.

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