quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Os Gatos: eles sempre caem de pé...


OS GATOS

Estranho como esses gatos não se desviam das sombras. Uma certa atração pelo escuro, é de se espantar que eles nunca fiquem tão assustados diante do desconhecido. Pensamentos vagos, quando olham para o nada, preenchem o vazio com imagens oníricas, quase sempre originadas na vida reclusa que adotaram, somente as palavras lhes abrindo o mundo. Talvez se sintam obrigados a enfrentar tais espectros, ou não consigam viver sem eles, essa convivência conflituosa consigo mesmo. Esses gatos são terríveis em suas almas maltrapilhas, malandras, e tudo que se apresenta como hesitação é driblado no instante em que a curva morta da estrada se apresenta como horizonte plausível.

Estranha a estrada. Os olhos brilham, faróis intermitentes, lusco-fusco. Apenas um sinal, aqui estou, cuidado, crianças na pista, animais, e os olhos sinalizando a partida em direção ao templo, que fica do outro lado do mundo. Uma romaria, turbilhão de pensamentos que conduzem esses olhos afoitos. Tinham um desejo, vomitar os anos minguados, migalhas e mãos estendidas, esmolas e loucuras, sonhos pisados. Nossa, quanto sujeira nesse caminho, desses olhos que nada escondem do que captaram, olhos medonhos, um caminhão que passa perto despeja a lama acumulada de uma chuva ininterrupta. Chove ainda, mas essa água lava a alma desses olhos cultivados durante anos na solidão, e agora resolveram caminhar em busca de um novo templo, situado na outra face do mundo.

Os gatos, um a um, caminham para o outro lado do mundo. Pela primeira vez desbaratados da mãe, vão os gatos livres da placenta que lhes travava o umbigo. Inocentes, resolvem ganhar as ruas, em busca de alimento, de si mesmos, querem ser livres, sete vidas sinalizam sete chances de vencer esse primeiro impacto com o outro lado da rua. Vão essas almas indiferentes ao olhar perverso da ratazana esfomeada. Muito Mais que devido à fome, a ratazana tem a ânsia de acabar com aqueles jovens porque sabe, em outro momento, será ela a perseguida, seu destino fatalmente acabará entre as garras de um felino, que lhe rasgará o couro, porá as suas vísceras à mostra e deixará a carcaça se decompondo na rua, pisoteada e fedida. Precisa ,portanto, lutar agora, antes que seja tarde demais.

Na estrada, durante a noite, todos são pardos. Apenas os olhos indicam a sua presença, quando refletem o brilho dos faróis enviesados, que cruzam em sentido contrário. Para onde vão ninguém sabe, há sempre esse mistério.

Mas há outros gatos, desviados das estradas, dos caminhões, gatos de rua, gatos de louça, no colo das senhoras sonhadoras, gatos de telhados, que tocam violino de acordo com o que dita a lua. Gatos escaldados como os irmãos da estrada, mas são gatos urbanos, os reis da floresta de concreto, os reis da noite. No que ela, a noite, tem de mais sofrido.

Na noite, quando os morcegos nos ameaçam com o seu vôo, saem de suas tocas gatos sofridos. Os morcegos contam outras histórias, macabras, cheias de sangue e terror por serem mais radicais nos hábitos noite adentro. Pouco sabemos da inocência desses seres demoníacos, apenas que eles têm a audição aguçada, e por isso se movem em vôos ligeiros, são como sombras , imagens fantasmagóricas de uma mente cheia de maldades. Na verdade, são seres estigmatizados pela sua aparência assustadora, cuja sombra serviu para dar vulto aos desejos recalcados de almas que se ocultaram em cavernas escuras e viram nesses espectrais seres projeções do sonho de ganhar com um vôo a noite, desapercebidos dos olhos comuns, invisíveis quase, assustadores sempre. Um morcego dentro de casa é mau agouro, um gato pode alegrar com seus feitiços. Mas um morcego dorme de dia. Um gato não dorme nunca.

Um gato sofrido não sabe olhar para o mundo sem que veja a poça d´agua afrontando-lhe a existência. Seu desprezo pela água é algo refinado, porque é a garantia de sua aparente pureza; no fundo prefere a lama, que não emite reflexos, a lama esconde as impurezas, a sujeira é a lama, e o gato sabe que com alguns golpes de língua recupera a força dede seu pêlo. Um gato sofrido caminha solitário por entre os prédios, espiando quartos e cozinhas, conduzindo-se pela intuição e pelo faro. Os prédios altos nunca lhe são obstáculos, até porque, pela cultura que desenvolveram, a morte e o medo não se interpõem aos objetivos que traça. A morte e o medo são um produto da ignorância da solidão, e esses gatos, mesmo os gatos infelizes, sabem muito bem como se livrar dos perigos de ser solitário. A solidão nos gatos é uma pré-condição para se manterem vivos. Por isso são avessos à vida em comunidade. Vive o gato em bando, bando de individualidades, sem competições, apenas defendendo o que é seu, e estendendo o seu território, que é a própria vida. Na peregrinação em busca de comida, prefere os hotéis, onde o aroma de carne está a todo instante invadindo o ar. Ele se debruça nas janelas e vê com os seus olhos de fogo casais se amando. Na verdade, seu interesse é pelos restos que ficam nos pratos sujos entre lençóis cheios de suor, quando as arrumadeiras recolhem tudo e jogam nas lixeiras.

É típico , deixando transparecer um desleixo com a saúde, esse modo de viver na lixeira, mas o gato não parece se preocupar com isso, seu terreno está em outro plano, seu território é exatamente aquele esquecido pelo resto da humanidade, ele anda na entrelinha, na marginal, no interstício, no entre. Talvez não tenha outra alternativa, pois rejeita a idéia de ser um gato feliz, que engorda todos os dias com a ração oferecida pela madame, ou mesmo pela menina da varanda, que tem medo de ver um dia a pobre gatinha linda ser levada por um desses gatunos da rua, um desses infelizes que andam de telhado em telhado esperando o momento oportuno para agir e levar consigo a fêmea. Levar consigo? Um gato que se preza, um gato de verdade, um gato infeliz, como se auto define esse sujeito noctívago, não mente, não engana. Ele transforma, e por isso é perigoso, essas gatinhas em terríveis construtoras de tristezas, destruidores de coração de uma ingênua garotinha de apartamento de zona sul, quando partem deixando para trás a bela vida, a vida tranqüila de um apartamento. Gato, seja ele qual for, gosta de aventuras, nenhum é totalmente domesticado, seu estilo de vida não comporta o domínio do outro. Neste ponto se finge tranqüilo, solidário, transmite afeto sim, mas no fundo a paixão que guarda é por si mesmo. E pela liberdade.

Alguém pode perguntar se um gato sobrevive os percalços de sete vidas. Talvez nem ele possa responder, sua consciência é a de um momento, sua vida é a vida presente. Porém há verdades inexoráveis sobre animal tão humano: ele sempre cai de pé. E desaparece quando quer.

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