segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O DUELO



É uma noite de tristeza. Próximo à janela, o sorriso demente de uma criança esfomeada. Na miséria, o som desse piano e das cordas de um violão, vindo da casa em frente, cria um cenário fantástico: os olhos secos e minguados e o som, como se vivessem o paraíso. Aquela casa iluminada é tudo que os olhos sonham, é tudo almejado na vida. A música muito mais, essa música sem voz, sem palavras. Sons e gestos somente, gestos até violentos, as mãos ferindo com força o teclado. A resposta incisiva dos acordes da guitarra.

É um duo aristocrático, exibicionista, um concerto solitário de dois amigos. Resolveram falar nessa linguagem sagrada, de deuses, sabem os amigos que não há no mundo quem entenda as razões, o mundo de pura mesquinharia. Ali, depois do muro, uma família maltrapilha vive de restos. Talvez por isso insistam na harmonia clássica, cujos acordes remontam alvoradas festivas de dias sonhados em épocas imemoriais da infância, quando se disputava com o fio da espada o desejo e a atenção da mulher. O tempo pode ressurgir, horizontes ainda por nascer, uma música cheia de espaços a serem preenchidos, música para poucos ouvidos.

Mas a criança, cheia de fome, olha para o lado de dentro da janela, ponto final de seu mundo, olha e sente pena de si por não estar sentado à mesa da casa onde dois amigos estão mudos, tomam vinho e se debruçam sobre instrumentos, deixando no ar uma música estranha aos ouvidos. Gostaria de estar lá, falar naquela língua, vestir-se como eles, deixar de sentir dor, abandono, de sacrificar a boca minguada, seca e cariada. Acho que gostaria de ser filho dessa gente, tocaria o seu tamborim de lata de goiabada, juntar-se às almas tranqüilas, pelo menos é assim que olha para o outro lado, o radiante da vida, bem melhor do que o vendaval da sua, que o leva para longe dessa gente feliz, sem fome.

Na sala os dois amigos se investigam. Cada acorde recebe o troco do olhar, uma atenção ensandecida, concentração à flor da pele. Uma tensão que se desenha em cada escala percorrida. Pela música se tocam, há um gosto estranho nas gargantas trancadas, engolindo palavras. Entorpecem-se. Um gole de vinho, estanca um silêncio, para morrer na música de Manuel De Falla, uma luta de andaluzes, ressonando no olhar beirando o trágico. Uma traição separa os dois ciganos, a aflição de palavras que não se alcançam. De longe, o olhar de uma criança solitária, que deseja ser como seus heróis, os homens fortes do lugarejo. Grita meu Deus, por que não sou assim, mas assim como, meu filho? Isto aqui é um inferno, há um punhal sobre os nossos olhares, pronto para se fazer sentir aterrado no coração, aqui não é o lugar do seu sonho, de sua imaginação, não somos nada do que pensa, na realidade aqui são dois homens prontos para se matarem, mas que sem coragem duelam com acordes de guitarra e piano e encontram nas peças que tocam a lâmina mortal da arena.

Esse menino, secando o tira-gosto e o vinho, o que quer? Quem de nós será mais feliz?

Os bichos vêm a seguir. São gatos da vizinhança, atraídos pelos sons. Pela insinuação de vida e do que nela corresponde a alimento, pois como a família miserável, estão sem comer. Correm o risco de serem comidos, há foices nos olhos. Mas na casa da frente não. Um prato de sardinhas fritas está entre os dois copos. Eles tocam uma música estranha, cheia de motivos mórbidos, alternados com uma sensualidade disfarçada nos giros de luz, o lustre refletido no pinho dourado da guitarra. Um foco nos olhos desses animais amantes da liberdade, agora platéia da arena onde dois infelizes se ameaçam, olhos e punhais sacados da decoração da rica sala. Da música, apenas o gesto final, a imagem do toureiro esticando com cruel delicadeza sua espada, cravando-a no dorso do touro, uma, duas, três, quatro vezes, o coração atingido, o amigo estirado no centro, de olhos a platéia, de joelhos o último e certeiro golpe. O chão tingido de rubro, e o olhar do menino.

O cenário, a arena estão ali. A testemunha atenta corre em direção aos imaginários brinquedos para pegar o seu tamborim. O menino quer fazer parte deles, o menino quer ser como eles, os amigos que tocam música, e ele corre em direção à casa em frente, ele pula rapidamente o muro, a música parou, ele pensa, a música me chama, ele grita, ele sabe que pode fazer voltar atrás o gesto final, não quer ver o seu sonho desaparecendo como um filete de sangue na fina areia. Porém é com amargura que cresce diante de si os olhos sobressaltados da morte estúpida, o corpo como um touro estirado sobre o assoalho brilhando, o corpo de um touro pedindo clemência, a boca desesperadamente aberta, o rubro escapando, muda, produz sons estranhos, não é mais a música sagrada, são os restos de um duelo. Os pés contorcidos e as garrafas de vinho, gatos devorando as sardinhas fritas.

O menino chega próximo ao corpo caído e se pergunta. Sabe, a resposta nunca virá. E sua fome jamais será morta. São minutos que antecedem a chegada da polícia, e como, os gatos, sabe que é melhor fugir dali. Deixar o corpo caído, o sangue sobre as teclas do piano. Quem acreditaria que ainda viu o olhar alucinado do homem cruzar a porta após estilhaçar o violão, os pedaços estirados no jardim da casa?

Uma noite triste, enfim, para um menino sonhador, que toca um tamborim de mentira, cercado por gatos e restos.

Renato França

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